sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A trama por trás do diabetes

Ao longo de vinte anos, projeto desvenda as conexões entre dieta e resistência à insulina no organismo

MARIA GUIMARÃES | Edição Especial 50 Anos de FAPESP
Revista Pesquisa FAPESP

Há vinte anos esmiuçando o funcionamento bioquímico de organismos que desenvolvem diabetes tipo 2, o médico Mario Saad, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), descobriu que a genética talvez seja a parte menos importante. “Nós somos o que comemos, menos a quantidade de exercício que fazemos, além do tipo de bactéria que temos no intestino”, resume. Uma boa máxima, ele admite, para um médico que pode assim aconselhar aos pacientes um estilo de vida que os proteja contra a doença – que atinge 350 milhões de pessoas no mundo todo e causa problemas como obesidade, risco de amputações e até a morte – ou diminua sua progressão.

Mas não se trata de invenção para convencer pacientes: a convicção de que o ambiente externo e as bactérias intestinais sobrepujam a proteção genética no surgimento de obesidade e diabetes está fundada em sólida pesquisa. O grupo de Saad revelou, em artigo publicado em dezembro de 2011 na PLoS Biology, que a população bacteriana inerente a qualquer intestino humano, além de benefícios à digestão, também pode contribuir para a resistência ao hormônio insulina pelas células, a condição precursora do diabetes. Quando o problema se instala, a insulina – mesmo que presente em altas concentrações – deixa de conseguir indicar às células dos músculos e de outros tecidos que retirem a glicose do sangue para estocá-la ou transformar em energia. Em experimentos com camundongos, a equipe da Unicamp verificou que o problema pode ser causado por uma proporção atipicamente alta de bactérias do filo Firmicutes, grupo que reúne dezenas de espécies e, ao lado de outros grupos de bactérias, constitui a microbiota intestinal. Parte do doutorado da bióloga Andrea Caricilli, os resultados chamaram tanto a atenção que, nos quatro meses em seguida à sua publicação, foi acessado mais de 13.500 vezes no site da revista.

“A microbiota intestinal não é a única causa do diabetes e da obesidade, nem provavelmente a mais importante”, comenta Saad. “Mas constatamos que ela contribui para gerar uma inflamação no tecido adiposo que inicia um processo de ganho anormal de peso que depois se perpetua.” As firmicutes parecem facilitar a passagem pela parede do intestino de moléculas que se soltam quando outras bactérias se rompem. São os lipopolissacarídeos (LPS), compostos por açúcares e gorduras, que acionam no resto do organismo sinais bioquímicos que ativam o sistema imunológico, causando uma inflamação subclínica (não acusada por sintomas) típica de obesos. Quando a obesidade se instala, alterações na parede do intestino aumentam ainda mais a permeabilidade a LPS, reforçando a reação imunológica que, nas células do fígado, dos músculos e do tecido adiposo, também desencadeia a resistência à insulina, reforçando assim a ligação entre diabetes e obesidade.

A protagonista da história é uma proteína da família dos receptores celulares toll-like(TLR), que identificam moléculas estranhas ao organismo e estimulam a reação do sistema imunológico. Neste caso, os experimentos foram feitos com camundongos sem TLR-2. Num experimento feito por pesquisadores do Canadá e da Suíça, esses camundongos, criados em ambiente estéril, não engordavam nem desenvolviam diabetes, mesmo com uma dieta supercalórica. Já no laboratório de Saad, aconteceu o contrário: eles ficaram obesos e diabéticos, mesmo recebendo a mesma ração dos outros roedores. A diferença estava no ambiente, que não era esterilizado – uma situação mais semelhante à da maior parte dos organismos que vivem fora de laboratórios, pessoas inclusive.

Análises genéticas das fezes desses camundongos revelaram uma microbiota muito diferente, em que quase metade eram bactérias Firmicutes. Nos outros animais, essa proporção era de 14%. “Os receptores toll-like predispõem a microbiota intestinal a um ou outro tipo de bactéria”, explica o médico, que já tinha obtido resultados diferentes com o TLR-4. Quando tratados com antibióticos, os camundongos voltaram a ter uma proporção normal de tipos bacterianos e recuperaram a função da insulina. “Achávamos que encontraríamos todas as respostas no Projeto Genoma Humano, mas agora precisamos sequenciar o genoma das bactérias para ver como elas interagem com o organismo humano.”

Rebeliões internas

A contribuição das bactérias para o desenvolvimento de diabetes lembra a ação de alienígenas que invadem o corpo, mas esses microrganismos na verdade estão dentro de um contexto muito mais amplo de controle bioquímico do metabolismo do açúcar, que pode dar errado por uma longa série de motivos que vem recheando a carreira de Saad. “O que se sabia era que a insulina se encaixava nos receptores das células e alguma coisa acontecia para causar um efeito biológico”, brinca, resumindo o conhecimento no começo dos anos 1990, época de seu pós-doutorado no Centro Joslin de Diabetes, parte da Escola Médica de Harvard, nos Estados Unidos. Foi lá mesmo, durante a estadia do médico brasileiro, que foi identificado o substrato do receptor de insulina (IRS-1), primeiro passo para entender o mecanismo molecular de resistência ao hormônio responsável pelo equilíbrio da glicose no organismo.

Em parte, são defeitos nesse mecanismo que causam o diabetes do tipo 2, aquele em que o pâncreas produz uma quantidade suficiente de insulina, mas ela não consegue acionar a maquinaria celular responsável por capturar a glicose. Parte do problema acontece nos receptores de insulina nas células do cérebro, mais especificamente no hipotálamo. Problemas de sinalização nessa parte do corpo podem desregular, por exemplo, o apetite, causando uma tendência a comer sem medidas. O que hoje é uma falha no funcionamento pode já ter sido importante na evolução do homem, explica Saad. “A fome e as epidemias causadas por doenças infecciosas, que foram as grandes causas de morte de nossos ancestrais, podem ter selecionado os genes que favoreçam o armazenamento de energia e respostas rápidas às infecções.” O próprio acúmulo de gordura pode ser visto como um mecanismo de defesa caso falte alimento, como era comum nos tempos em que a espécie humana vivia em cavernas. Hoje, porém, o organismo mantém a ordem de comer muito, mesmo que nem sempre a comida seja escassa.

O mais grave é que a ordem para armazenar acaba se tornando crônica, em parte porque os mecanismos vão muito além do que acontece no cérebro, conforme mostrou ao longo dos anos o trabalho da equipe de Saad, que hoje inclui grupos liderados pelos pesquisadores Lício Velloso e José Barreto Carvalheira, também da Unicamp. Assim como acontece no hipotálamo, num prazo de dez dias as células dos músculos se tornam resistentes à insulina em camundongos que recebem uma dieta rica em gorduras. Em seguida, o problema atinge o fígado e os vasos sanguíneos, também danificados pelos altos níveis de glicose circulante. Mas não basta o chamado “pé na jaca” das comilanças de Natal ou de umas férias gastronômicas para que a incapacidade de responder ao hormônio e capturar glicose do sangue se alastre mais e atinja o tecido adiposo – formado por células especializadas em acumular gordura. Para isso, ratos em experimento no laboratório da Unicamp precisaram de cinco meses da dieta que simula maus hábitos ocidentais, com alto consumo calórico. Daí surge a obesidade com frequência associada ao diabetes.

A obesidade, os estudos reforçam cada vez mais, é um fator importante que age de várias formas no desenvolvimento do diabetes. Um desses elos é o angiotensinogênio produzido nas células adiposas. Essa proteína é precursora da angiotensina, molécula que tem função central no controle da pressão arterial. Em 1995, durante pós-doutorado com Saad, Lício Velloso se embrenhou no problema e acabou por mostrar que a angiotensina também é um empecilho à ação da insulina, por meio de alterações na IRS-1. Estava estabelecida uma conexão clara entre obesidade, diabetes e hipertensão, um trio que costuma andar de mãos dadas. Mais do que isso, o grupo mostrou também – no trabalho de Carla Carvalho, outra pós-doutoranda – que drogas anti-hipertensivas que reduzem os teores de angiotensina também contribuem para um melhor funcionamento da insulina, causando uma melhora no quadro de diabetes. A importância da descoberta passou longe de despercebida pela comunidade científica. Foi divulgada em 1996 na PNAS e é hoje o artigo do grupo de Saad mais citado em publicações acadêmicas.

As células de gordura também se caracterizam por serem palco de embates do sistema imunológico que geram a inflamação característica do obeso. “‘Você está com um leve quadro inflamatório’ poderia ser uma forma politicamente correta de dizer a um paciente que está obeso”, brinca Saad. Ele detalha que o tecido adiposo produz citocinas – fatores inflamatórios como a interleucina-6 e o TNF-alfa – que atraem os macrófagos, as células do sistema imunológico responsáveis por dar cabo de partículas invasoras por meio da fagocitose (em termos genéricos, eles engolem e digerem esses visitantes indesejados). Apesar de não causarem alterações de temperatura detectáveis nem dor, sintomas comuns das reações inflamatórias, essas substâncias ativam as enzimas JNK e IKK-beta, que por sua vez alteram a configuração da IRS1. Outro fator a causar resistência à insulina.

Mostrando que essas relações nunca são lineares e que o organismo funciona como uma rede altamente complexa, essas enzimas – assim como a óxido nítrico sintase induzível (iNOS) – também são acionadas pelas proteínas de membrana celular TLR-4. Estas, por sua vez, respondem aos lipopolissacarídeos liberados pela microbiota intestinal dominada por Firmicutes, aquela mesma que contribui para a obesidade e o diabetes. O grupo da Unicamp demonstrou o protagonismo do TLR-4 com experimentos usando camundongos mutantes em que o receptor para essa proteína não é funcional: esses animais podiam se esbaldar numa dieta gordurosa, e mesmo assim não engordavam. Exatamente o contrário do que aconteceu no mesmo laboratório, anos depois, com animais mutantes para o TLR-2. O LPS, mesmo produzido em grandes quantidades, não causava problemas. Essa importância do TLR-4 na conexão entre dietas cheias de frituras e o desenvolvimento de diabetes foi parte do trabalho de doutorado de Daniela Tsukumo. Publicados em 2007 na Diabetes, os resultados renderam ao grupo de Saad uma de suas publicações mais citadas em artigos científicos.

Revelar esse papel dos receptores da família toll like é importante para a compreensão de como a doença funciona, mas ainda não chega perto de dar origem a terapias para controlar o diabetes. “Um bloqueador de TLR-4 pode ajudar, mas como essa molécula tem uma função importante no controle de infecções, não podemos bloqueá-lo por inteiro”, explica Saad. Por enquanto, o médico celebra uma realização mais simples, mas que traz alívio real aos pacientes: uma pomada à base de insulina que acelera a cicatrização, reduzindo os riscos de amputação comuns em casos avançados de diabetes. A descrição está prestes a ser publicada na PLoS One.

Saad compara essa trama intrincada ao poema “Verdade”, de Carlos Drummond de Andrade. A verdade está sempre dividida em metades que não se encaixam perfeitamente. Cada pessoa que a procura só tem acesso a uma dessas metades, e se tentar escolher a mais bonita nunca poderá fazer uma escolha isenta. Não conformado, o (também mineiro) médico continua encaixando as peças da verdade que compõem o metabolismo do diabetes, para quem sabe um dia encontrar mais soluções.

Artigos científicos

1. VELLOSO, L. A. et al. Cross-talk between the insulin and angiotensin signaling systems. PNAS. v. 93, n. 22, p. 12490, 1996.
2. TSUKUMO, D. M. L. et al. Loss-of-function mutation in Toll-like receptor 4 prevents diet-induced obesity and insulin resistance. Diabetes. v. 56, n. 8. p. 1986-98, 2007.
3. CARICILLI, A.M. et al. Gut microbiota is a key modulator of insuline resistance in TLR2 knockout mice. PLoS Biology. v. 9, n. 12, e1001212, 2011.

De nosso arquivo
Da obesidade ao diabetes – Edição nº 82 – dezembro de 2002
Dieta de alto risco – Edição nº 140 – outubro de 2007
Conexões viscerais – Edição nº 193 – março de 2012

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