sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Jardineiras fieis

Formigas ajudam sementes a germinar na mata atlântica e no cerrado

MARIA GUIMARÃES | Edição Especial 50 Anos de FAPESP

Quando viu a polpa de um fruto de jatobá aberto ser devorada por formigas numa floresta, em meados dos anos 1990, o biólogo Paulo Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), começou a duvidar da noção difundida de que esses insetos sociais têm um papel desprezível na ecologia das sementes. Cerca de 15 anos depois, o grupo de pesquisa imerso na intimidade das relações entre plantas e formigas mostra que os pequenos animais não só arrastam as sementes para locais mais propícios como as limpam, facilitando a germinação. “A dispersão de sementes nos trópicos é muito mais complexa do que se achava”, comenta Oliveira.

Quase todos os holofotes dos estudos sobre ecologia de dispersão de sementes estão voltados para aves, macacos e outros vertebrados atraídos pelos frutos coloridos e com polpa saborosa de nove entre dez espécies de árvores e arbustos de grande porte. Esses animais carregam os frutos por grandes distâncias e lançam as sementes ao solo. Se o fruto cai por acidente, ele ainda pode estar quase intacto, mas mesmo depois de passar pelo sistema digestivo muitas vezes ainda resta um bom tanto de polpa.

O que acontece no chão, entretanto, passou praticamente despercebido até Oliveira fincar aí um dos fios condutores de seu grupo de pesquisa. Um dos produtos vem do doutorado de Alexander Christianini, agora professor no campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ele e Oliveira mostram que no cerrado de Itirapina, no interior de São Paulo, formigas de cinco gêneros recolhem as sementes que chegam ao chão e sugerem, em artigo de 2009 na Oecologia, um papel importante para as formigas depois que as aves transportaram as sementes para bem longe da árvore-mãe: o serviço mais detalhado de jardinagem.

Aves e macacos costumam depositar as sementes debaixo de alguma árvore. Os restos de polpa então atraem as formigas, que levam nacos para dentro do formigueiro. “A semente fica limpinha no chão da floresta”, conta Oliveira, “impedindo que fungos se instalem e acabem por matar o embrião da planta”. Além disso, algumas formigas carregam as sementes até o formigueiro, que o pesquisador descreve como “uma ilha de nutrientes”, já que ali estão pedaços descartados de plantas e restos de formigas mortas e outros insetos.

O jatobá (Hymenaea courbaril) despertou a curiosidade do pesquisador. Num experimento, com colegas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro e da Universidade Federal de Mato Grosso, ele mostrou que 70% das sementes limpas pelas formigas brotaram, o que só aconteceu com 20% das que não foram tratadas pelas pequenas jardineiras. De 1995 para cá, essa linha de pesquisa deu origem a seis doutorados que revelaram que essa relação é bastante generalizada na mata atlântica e no cerrado.

Presas fáceis

Durante sua estadia no laboratório de Oliveira nos anos 1990, Marco Pizo se concentrou sobre interações entre plantas e formigas na mata atlântica e mostrou que o arilo nutritivo vermelho em torno das sementes da canjerana (Cabralea canjerana) atrai formigas carnívoras. “Para as formigas carnívoras os frutos ricos em proteínas e gorduras são como insetos que não brigam, não mordem e não saem correndo”, compara Oliveira. Pizo, agora na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, espalhou sementes com e sem polpa pelo chão da floresta, protegidas por pequenas gaiolas para evitar que fossem recolhidas por animais maiores. Ficou claro que as formigas preferem as sementes com polpa (71% da parte vermelha é gordura) e que essas sementes germinam muito mais depressa depois de semeadas pelos pequenos insetos, conforme artigo destacado na capa do American Journal of Botany em 1998.

Provado que as formigas transportam sementes, restava verificar se essa dispersão é direcionada ou aleatória. Durante o doutorado com Oliveira, Luciana Passos investigou as relações entre plantas e formigas na mata de restinga da Ilha do Cardoso, no litoral sul paulista. Parte da mata atlântica, essa floresta é menos exuberante por crescer em solo mais pobre e arenoso. Ela espalhou pedaços de sardinha pela ilha para atrair formigas carnívoras, que a conduziram de volta aos ninhos – 21 deles.

Em artigo publicado em 2002 no Journal of Ecology, Luciana conta o que acontece com os frutos ricos em óleo da árvore Clusia criuva, ou clúsia, que produz numa estação por volta de 5.800 frutos com, ao todo, 25 mil sementes. Boa parte delas (83%) acaba nas fezes de 14 espécies diferentes de aves. A pesquisadora viu que as sementes que caem ao chão são transportadas por até 10 metros pelas formigas Odontomachus e Pachycondyla, carnívoras da subfamília das poneríneas, que “têm uma picada dolorida como se fossem marimbondos”, conta Oliveira.

Mas a história não acaba aí. Luciana investigou mais a fundo e viu que essas formigas removem 98% das sementes que chegam às fezes das aves ainda não completamente digeridas. A bióloga então contou os jovens brotos de clúsias e encontrou um número desproporcional junto aos formigueiros – o dobro do que viu no resto da mata. Além disso, ela manteve o censo de plantas jovens ao longo de um ano e viu que ao redor dos formigueiros elas têm chances significativamente maiores de sobreviver. Luciana mandou amostras desse solo para análise no Instituto Agronômico de Campinas e verificou que ele é mais rico em nitrogênio e potássio do que o resto da floresta, graças aos detritos acumulados pelas formigas.

O mesmo acontece com a maria-faceira (Guapira opposita), cujos frutos pretos de cabo vermelho atraem aves como o araçaripoca e a saíra-sete-cores e têm alto teor de proteínas (28%), de acordo com artigo de 2004 na Oecologia. As formigas Odontomachus carregam as sementes por até 4 metros e em torno de seus ninhos – onde a terra é muito mais fofa, além de mais rica em potássio, fósforo e cálcio – se aglomeram brotos.

Alexander Christianini deu um passo além e demonstrou que o desmatamento do cerrado invalida o efeito positivo das formigas na ecologia das plantas. Já se sabe que o miolo das ilhas de floresta é mais fresco e úmido do que a fronteira com áreas desmatadas. O pesquisador mostrou que as formigas grandes também são mais comuns no interior do cerrado, onde o solo é mais rico em nutrientes e mais macio. Ao longo de um ano de monitoramento, 92% das colônias de formigas do interior da mata persistem, ante só 30% nas bordas. Como ali também as plantas germinam melhor junto aos formigueiros, jovens plantas nas bordas têm cerca de 0,2% de chances de sobreviver ao primeiro ano de vida. Esses resultados deixam claro que o desmatamento tem efeitos nocivos tanto sobre as formigas como sobre as plantas, e que esses efeitos se somam. Mas, com seu talento de jardineiras, as formigas podem ajudar a recuperar uma floresta alterada, contribuindo para a germinação das sementes.

Isso quando as condições adversas não impedem seu trabalho. Na mata atlântica, a fragmentação prejudica os benefícios da população de formigas sobre a regeneração da floresta, segundo tese de Gabriela Bieber defendida no início de 2012. “As formigas grandes são mais exigentes e não ficam nas bordas das florestas”, explica Oliveira. Além disso, o trabalho também mostrou que os insetos têm preferência por frutos já manuseados ou mordidos por animais maiores, cuja presença fica muito reduzida em trechos pequenos de mata.

O grupo da Unicamp vem descobrindo muito mais sobre as funções ecológicas desses soldados e operários em miniatura. Algumas plantas produzem substâncias para atrair formigas, que retribuem servindo como tropas de defesa. É o caso do pequi (Caryocar brasiliense), planta típica de cerrado que dá frutos muito apreciados na culinária da região central do país. As formigas se deliciam com o néctar que brota de glândulas nos botões das flores do pequi e atacam outros insetos, como lagartas. Sebastián Sendoya, aluno de Oliveira e André Freitas, mostrou que as borboletas Eunica bechina, especializadas em depositar seus ovos nas folhas do pequi, sobrevoam as plantas e detectam formigas predadoras. O trabalho, publicado em 2009 na American Naturalist, indica que a sofisticação visual das borboletas lhes permite pôr ovos em folhas seguras e até reconhecer formigas inofensivas.

Mas formigas e lagartas nem sempre são adversárias. Num exemplo da rica diversidade dessas relações, as borboletas Parrhasius polibetes escolhem pôr ovos em plantas repletas de formigas, segundo trabalho de Lucas Kaminski – outra coorientação de Oliveira com André Freitas – publicado em 2010 na American Naturalist. O trabalho foi feito numa área de cerrado na região de Campinas e mostrou que as borboletas escolhem pôr ovos em ramos onde há formigas pastoreando cigarrinhas (Guayaquila xiphias) produtoras de uma secreção açucarada. Ao proteger seu precioso gado, as formigas criam ali uma zona protegida de outros inimigos, como aranhas ou vespas, o que para as borboletas em formação pode significar uma taxa de sobrevivência seis vezes maior.

Boa parte dessa história, com mais detalhes, está no que Oliveira considera o trabalho mais importante de sua vida: o livro The ecology and evolution of ant-plant interactions, que ele escreveu em parceria com seu colega mexicano Victor Rico-Gray. Publicado em 2007 pela Chicago University Press, o livro é uma ampla revisão das interações ecológicas que se conhece entre formigas e plantas. “As pessoas dão mais importância aos vertebrados porque são os animais que enxergam com mais facilidade”, protesta o biólogo da Unicamp, “mas na Amazônia o peso seco de invertebrados é quatro vezes maior do que o de vertebrados”. E as formigas, cujas colônias podem chegar a milhões de operárias, são os mais numerosos entre os invertebrados.


Artigos científicos 
1. KAMINSKI, L. A. et al. Interaction between mutualisms: Ant-tended butterflies exploit enemy-free space provided by ant-treehopper associations. The American Naturalist. v. 176, n. 3, p. 322-34. set. 2010.
2. CHRISTIANINI, A. V. e OLIVEIRA, P. S. The relevance of ants as seed rescuers of a primarily bird-dispersed tree in the Neotropical cerrado savanna. Oecologia. v. 160, n. 4, p. 735-45. jul. 2009.
3. SENDOYA, S. F. et al. Egg-laying butterflies distinguish predaceous ants by sight.The American Naturalist. v. 174, n. 1, p. 134-39. jul. 2009.

Link:
http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/08/17/jardineiras-fi%C3%A9is/

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