sexta-feira, 12 de abril de 2013

Grupos querem globalizar ritual do Santo Daime e se afastam da origem, diz pesquisador israelense

Data: 09.04.2013
O desconhecimento a respeito da origem e da divisão dos seguidores do Santo Daime contribui para o consumo crescente da bebida, dentro e fora do Brasil. Usando o mesmo nome, vários grupos são percebidos equivocadamente por pesquisadores e pela opinião pública como parte de uma mesma tradição religiosa. As diferenças existem, são significativas e dividem os adeptos em duas tradições bem distintas, de acordo com o pesquisador israelense Tom Orgad, 31, da Universidade de Tel-Aviv, autor de uma tese de doutorado, escrita em hebraico, intitulada "O Daime: de um ritual comunitário local a uma religião messiânica expansiva", que lança luz no ambiente em que se desenrola a diferença entre as duas principais versões do Santo Daime.

Ayahuasca, Daime, Santo Daime (existem outros tantos nomes) é uma bebida cuja origem ancestral se atribui aos índios do Peru. Há muitos anos é consumida durante rituais religiosos por populações de todos os países da Bacia Amazônica, mas ficou famoso mesmo a partir do Acre. Ayahuasca é um termo de origem quéchua, que significa “vinho das almas” ou “cipó dos mortos”.

A bebida, obtida a partir do cozimento do cipó jagube (Banisteriopsis spp.) e da folha do arbusto chacrona (Psychotria viridis), é capaz, como acontece durante um sonho, de revelar o mundo espiritual, sendo o efeito conhecido como "miração". É rica em harmina, harmalina e DMT (dimetil triptamina).

A origem do que se conhece atualmente como doutrina do Daime se deu em Rio Branco (AC), durante a primeira metade do século XX, quando o negro maranhense Raimundo Irineu Serra (1892-1971), fundou o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, que funciona na localidade conhecida como Alto Santo, a 10 Km do centro da cidade. Pode-se dizer que o grupo original é ortodoxo.

O outro grupo, que tem maior visibilidade, dentro e fora do país, surgiu em meados da década de 1970, quando Sebastião Mota se desligou do centro original. Mota abriu o que é conhecido atualmente com Instituto de Desenvolvimento Ambiental, do Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra.

Tom Orgad estabelece em sua tese as diferenças entre os dois principais grupos. Enquanto o original se considera esotérico e evita o título de religião no sentido convencional, o outro movimenta-se pela “protestantização” do Daime, abrindo filiais dentro e fora do país.

- Essa versão virou uma religião messiânica expansiva, uma igreja, faz parte de um movimento mais amplo, da espiritualidade moderna e da new age, da nova era. A nova comunidade do Daime autorizou o uso de outras substâncias psicoativas, como a maconha, que passou a ocupar uma parte central no ritual. Também inseriu elementos da umbanda no ritual e desenvolveu uma filosofia utópica que enfatiza elementos de panteísmo e idealização da natureza – assinala o pesquisador, para quem os seguidores de Sebastião Mota estão empenhados em globalizar o ritual do Daime.

Tom Orgad é filho de família judaica. Agnósticos, os pais dele, que são artistas, sempre consideraram o judaísmo como tradição familiar e não como religião. No Brasil, como um "buscador espiritual", se tornou cristão e frequenta o centro original do Daime.

O pesquisador admite que poderia, mesmo a família não sendo de judeus praticantes, enfrentar problemas no país dele ao declarar que frequenta um centro de doutrinação cristã:

- A maioria dos judeus israelenses, mesmo que seja não praticante, é muito orgulhosa de sua raça e nacionalidade. Não apoiariam o envolvimento de um judeu com nenhuma outra tradição religiosa, especialmente com uma ligada ao cristianismo, com qual o judaísmo diverge em muitos aspectos. Agradeço a meus pais por sua tolerância.

Veja a entrevista com Tom Orgad:

BLOG DA AMAZÔNIA – O que motivou você a pesquisar sobre o Daime?

TOM ORGAD - Eu queria analisar e entender as diferenças entre vários grupos que se denominam Daime ou Santo Daime. Embora vários grupos se apresentem usando o mesmo nome, estão sendo percebidos por uma grande parte do público e até por alguns pesquisadores, como se pertencessem à mesma tradição religiosa. Mas existem diferenças muito significativas entre eles. Essas diferenças dividem o Daime em duas tradições bem distintas.

Você diz isso porque existe um centro original, a partir do qual surgiram grupos que se tornaram prevalentes na opinião pública, na mídia e no mundo?

Exatamente. Existem duas versões do Daime: uma é a versão original, que percebo como um ritual comunitário local. Este ritual foi estabelecido em Rio Branco durante a primeira metade do século XX por Raimundo Irineu Serra, negro nascido no Maranhão, conhecido como Mestre Irineu. O ritual está sendo preservado até o presente no mesmo local que ele fundou, no Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo ou Ciclu – Alto Santo. A outra versão é muito mais recente. Ela foi formada nos anos 70 por Sebastião Mota, um membro que retirou-se do grupo original e abriu seu próprio centro. Essa versão virou uma religião messiânica expansiva, uma igreja, dirigida por um instituto religioso chamado Ida-Cefluris, que significa Instituto de Desenvolvimento Ambiental do Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra. Ele está empenhado em globalizar o ritual do Daime. O Cefluris mudou o ritual significativamente, criando uma versão modernizada e globalizada. Alguns dos elementos principais dessa versão são muito diferentes da tradição original do centro fundado por Irineu Serra. Essa divisão do Daime por vários motivos ainda não foi estudada profundamente pelo pesquisadores.

Quais os motivos?

Os motivos principais estão ligados aos interesses políticos e ao envolvimento pessoal dos pesquisadores com o movimento messiânico expansivo do Daime. A maioria dos pesquisadores do Daime desenvolve, em certo ponto, um forte vínculo pessoal com as comunidades pesquisadas, que na maioria dos casos pertencem ao Cefruris. Muitos se tornam membros oficiais do instituto que espalha a versão messiânica do ritual. Alguns dos pesquisadores mais conhecidos até dirigem igrejas. Portanto, em muitos casos, eles procuram defender os interesses do instituto religioso, da expansão do ritual, e formulam suas questões e temas de pesquisa tendo o objetivo da legitimação e legalização do Daime nos grandes centros urbanos do Brasil e do exterior.

Qual o problema disso?

O problema é que o centro original do Daime, que foi dirigido por Mestre Irineu até o falecimento dele, em 1971, discorda fortemente de vários elementos que o Cefluris adicionou ao ritual, e se opõe à sua expansão pelo mundo. Portanto, alguns pesquisadores preferem ignorar a existência da comunidade original do Daime e sua tradição distinta. Preferem varrer para baixo do tapete opiniões que podem contradizer ou atrapalhar suas atividades políticas em defesa da expansão do ritual. Um resultado dessa tendência é que poucos pesquisadores abordam as diferenças entre as versões do Daime, que eu acho bem significativas.

O que você pontua como diferença entre as duas versões do Daime?

Isso é o tema principal da minha pesquisa de doutorado. Para simplificar, diria que o Ciclu-Alto Santo, que preserva a versão original do ritual, percebe a tradição do Daime como sendo um trabalho espiritual esotérico e único. Seus membros rejeitam qualquer influência externa ou possibilidade de mudança. Acreditam que a tradição do fundador Irineu Serra deve ser mantida da mesma maneira que ele deixou. A versão expansiva, dirigida principalmente pelo Cefluris, faz parte de um movimento mais amplo, da espiritualidade moderna e da new age, da nova era. Assim, se concentra menos nos estudos deixados pelo fundador, e procura fazer mudanças necessárias para introduzir a nova versão do Daime e de mantê-la dentro do mercado global da espiritualidade alternativa.

Como isso aconteceu?

Nos anos 70, depois do falecimento de Irineu Serra, aconteceu uma divisão no Ciclu-Alto Santo, o centro original do daime. Um dos seguidores, Sebastião Mota, saiu e formou o seu próprio centro, o Cefluris, num lugar chamado Colônia Cinco Mil, na periferia rural de Rio Branco, no Acre. Na mesma época, estavam chegando ao Acre as influências do movimento new age, levadas por hippies e buscadores espirituais, principalmente do sul do Brasil, que procuravam se afastar do ambiente urbano e industrializado. No campo sociológico eles são definidos como membros do “cultic milieu” – um movimento geral de buscadores espirituais. Esses buscadores não pertencem a um movimento só. Eles operam como consumidores no mercado amplo da espiritualidade alternativa, na sociedade secular e capitalista. Assim, os buscadores que vieram para o Acre trouxeram influências ecléticas, de varias fontes.

Sincretismo?

Eles eram influenciados pelos escritos de Carlos Castañeda, que divulgou a ideia de iniciação espiritual, xamânica, usando substâncias psicoativas. Também foram influenciados pelas ideias modernas de canalização e terapias alternativas, além de versões das religiões afro-brasileiras. As lideranças do Ciclu-Alto Santo rejeitaram essas influências e insistiram em preservar sua versão do ritual. Sebastião Mota e os membros do seu novo centro receberam de braços abertos as novas ideias e influências. Gradativamente inseriu e assimilou padrões comuns do movimentonew age dentro do seu ritual e sistema de crenças. Em outras palavras, depois da morte do fundador Irineu Serra, o Cefluris resolveu misturar a doutrina religiosa que ele deixou com alguns elementos prevalentes da espiritualidade alternativa global e da sociedade secular moderna.

Pode citar um exemplo concreto disso?

A nova comunidade do Daime autorizou o uso de outras substâncias psicoativas, como a maconha, que passou a ocupar uma parte central no ritual. Também inseriram elementos da umbanda no ritual e desenvolveram uma filosofia utópica que enfatiza elementos de panteísmo e idealização da natureza. 

Essa versão do Daime é mais experimental?

Pode ser. Os líderes do Cefluris cultivam a ideia de que o Daime é parte de um movimento amplo. Assim, a bebida ayahuasca, que a versão original do Daime considera como substância única, cujo consumo é permitido durante o ritual, é percebida pelo Cefluris como mais um membro da tradição do que eles consideram como “plantas de poder”. Varias comunidades do Cefluris organizam rituais durante os quais ingerem ayahuasca, são pedro, que é um cacto psicoativo, além de maconha. O centro original do Daime procura seguir doutrina bem definida, separada de qualquer outro caminho ou prática espiritual, enquanto a versão expansiva flui entre buscadores espirituais e se permite experimentar e misturar.

Por isso é eclética, não segue, digamos, um fundamento?

Na minha opinião, o ecletismo também tem uma razão prática. O Cefluris segue o objetivo de formar uma rede global de igrejas do Daime. Não é mais uma comunidade só, onde um sistema único de crenças pode ser praticado e cultivado. Temos que lembrar as implicações comerciais. O instituto do Cefluris abastece com ayahuasca igrejas no mundo inteiro em troca de contribuição financeira. Embora o instituto não venda oficialmente a bebida, existem algumas comunidades na Amazônia, ligadas ao instituto, cuja fonte principal de renda é a exportação da ayahuasca.

Qual o resultado desse aspecto comercial?

Isso pode incentivar os produtores ou fornecedores da ayahuasca a não obrigar os consumidores a seguir uma tradição rígida, que poderia até limitar e reduzir a possibilidade de expansão e crescimento institucional. Isso pode gerar uma abordagem mais flexível. Esse elemento econômico cria uma diferença fundamental entre as versões do Daime. Pela versão original, a bebida ayahusca pode ser produzida somente num ritual específico, rigoroso e muito reservado, por uma equipe fechada de homens. Ela pode ser consumida somente dentro da comunidade, e nunca pode ser vendida para se obter lucro financeiro. A globalização do Daime, porém, mudou essa tradição. O instituto do Cefluris, que esta comprometido em enviar a bebida para dezenas de igrejas, às vezes usa maquinas ou inventa novas variações da bebida, como, por exemplo, uma forma mais concentrada, para facilitar o transporte.

Além de exportar a bebida do Acre e do Amazonas para outros estados, ela também é exportada para outros países?

Sim, o que agrava a situação. A bebida está sendo enviada para comunidades estrangeiras, cujos membros têm condições financeiras bem melhores que os produtores da bebida na Amazônia. Isso pode incentivar os produtores da bebida a pedir uma contribuição que também compense pelo tempo e esforço dedicados à produção. E assim a ayahuasca passa a ser a profissão de alguns. Além de criar conflitos e problemas internos dentro das comunidades que produzem e espalham a bebida, isso é completamente contra a tradição original, que, como já dissemos, proíbe o envolvimento de qualquer elemento comercial na produção ou no consumo da ayahuasca.

Texto e entrevista completa no link:
http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2013/04/09/grupos-querem-globalizar-ritual-do-santo-daime-e-se-afastam-da-origem-diz-pesquisador-israelense-2/

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