terça-feira, 11 de março de 2014

O Curupira perdeu a força do mito, artigo de Raimundo Nonato Brabo Alves

Curupira. Imagem: fotosimagens.net

[EcoDebate] O Curupira é uma entidade mitológica do folclore brasileiro. Tão antiga que o Padre José de Anchieta já o citava em 1560. Sua lenda alerta ao povo brasileiro da proteção das matas e dos animais. Dizem que ele emite assovios horripilantes para assustar e confundir caçadores que não respeitam o período de procriação dos animais, que caçam além do que necessitam para se alimentar e também protege as florestas dos lenhadores que derrubam árvores de forma predatória. O Curupira tem os pés virados para traz para confundir com suas pegadas os malfeitores que ao segui-lo, se afastam cada vez mais para o centro da floresta e são confundidos com ilusões que os deixam perdidos e enlouquecidos.

No tempo de José de Anchieta eram apenas os caçadores e lenhadores. Hoje além deles são madeireiros, barrageiros, mineradores, garimpeiros, agronegociadores e principalmente legisladores que se o Curupira como entidade da floresta não conseguiu inspira-los, já perdeu ha muito seu poder de proteção contra os demais atores de destruição da floresta, tanto da Mata Atlântica quanto da Amazônia.

O Curupira perdeu feio a batalha no Congresso Nacional com o novo texto do Código Florestal aprovado em primeira instancia na Câmara e no Senado. O “novo código” cujas emendas ameaçam as APPs e as matas ciliares e anistiava os desmatadores que em desrespeito a lei não preservou suas reservas florestais, se constitui em retrocesso segundo a comunidade científica e de ecologistas, preocupados com os crescentes desequilíbrios ambientais.

Na floresta propriamente dita, o Curupira já não tem mais poder para confundir e demover de seus objetivos os barrageiros, que com o início das obras de Belo Monte anunciaram o start para a construção de dezenas de barragens na Amazônia. Hoje é crítica a cheia do Rio Madeira entre o conflito de interesses dos consórcios de Santo Antônio e Girau, inundando e isolando a cidade de Porto Velho e municípios vizinhos, no estado de Rondônia. Outras barragens estão sendo construídas removendo centenas de comunidades indígenas e tradicionais de suas terras e inundando milhares de hectares de solo e floresta, com toda a sua biodiversidade ainda desconhecida.

Não tem mais poder o Curupira de impedir o avanço do agronegócio de monocultivos sobre as pequenas propriedades de agricultores familiares, que ao vendê-las a preços aviltantes aos grandes grupos empresarias, se tornam assalariados das mesmas empresas, comprometendo a cadeia produtiva de inúmeros cultivos como a o da mandioca, produto altamente ligado à cultura amazônida, provocando a instabilidade de oferta e de preço como no ano anterior, comprometendo a segurança alimentar da região.

O Curupira há muito não consegue mais confundir os garimpeiros e mineradores que com equipamentos mais sofisticados multiplicam por muitas vezes a velocidade de exploração dos minerais da Amazônia a ponto de suplantar a capacidade de degradação natural de seus rejeitos tóxicos, transferindo como herança para às futuras gerações, verdadeiros “cemitérios” de metais pesados nas proximidades da maior bacia hidrográfica do planeta.

Os mitos e lendas da Amazônia, tal como o Curupira, vem sendo triturados e liquefeitos pelas serras, turbinas, fornos e engrenagens que nos últimos 50 anos promovem o “desenvolvimento” da Amazônia. Quanto mais se fala em sustentabilidade a impressão que fica é a de que menos se pratica. Espero que haja tempo para uma reflexão da sociedade sobre o futuro que queremos, para que nossos mitos e lendas tenham algum significado para as futuras gerações.

Raimundo Nonato Brabo Alves é Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental

EcoDebate, 28/02/2014

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