sexta-feira, 4 de abril de 2014

A 'Lei do Futuro': novos rumos para a agricultura francesa?

04.04.2014

Aguardada com grande expectativa, deve entrar em vigor em 2014 a legislação que vai estabelecer novos rumos à agricultura da França.

Fábio Luiz Búrigo, Ademir Antonio Cazella e Yannick Sencébé (*)
A Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia (UE) é relativamente conhecida entre especialistas brasileiros que estudam os temas de políticas públicas e comércio internacional de produtos agropecuários. O que é pouco debatido, no entanto, são as margens de manobras que cada país-membro da UE dispõe para imprimir orientações particulares e/ou apoiar determinadas especificidades do seu setor agrícola que a PAC por si só não contempla de forma satisfatória. Aguardada com grande expectativa, deve entrar em vigor em 2014 a legislação que vai estabelecer novos rumos à agricultura da França, país cuja produção e tradição agropecuária ocupam um lugar de destaque no seio da UE. Além de estabelecer novas regras de funcionamento das cadeias produtivas, a mudança do marco jurídico deve lançar parâmetros atualizados, visando disciplinar o uso dos espaços rurais, bem como fortalecer as ações de desenvolvimento rural do país.

A coordenação do processo de elaboração da chamada “Lei do Futuro” (Loi d'Avenir pour l'agriculture, l'alimentation et la forêt) foi delegada pelo ministro da Agricultura do governo socialista do presidente François Hollande (2012-2016) ao sociólogo Bertrand Hervieu. Ex-presidente do Institut National de Recherche Agronomique (equivalente à Embrapa brasileira), Hervieu é considerado um dos “pais” da chamada lei da multifuncionalidade agrícola aprovada em 1998, durante o mandado do primeiro-ministro socialista Lionel Jospin (1997-2002). Com a derrota eleitoral dos socialistas em 2002, o propósito de incentivar, via políticas públicas, as múltiplas funções da agricultura ao desenvolvimento rural, a exemplo da produção de alimentos de qualidade, proteção do meio ambiente, promoção do desenvolvimento territorial, manutenção de um tecido social, e não somente a produção de alimentos e fibras, ficou em segundo plano desde então.

Profundo conhecedor do meio rural e das transformações geradas pela modernização da agricultura francesa nos últimos cinquenta anos, Hervieu tem procurado estruturar a Lei do Futuro de modo a contemplar diferentes desafios interpostos pela União Europeia e, principalmente, pelos atores sociais ligados ao setor agropecuário, com as aspirações e problemáticas apontadas pela sociedade francesa, notadamente em termos da qualidade dos alimentos e da preservação ambiental. Os temas da agroecologia, da instalação de jovens agricultores e do reforço de estratégias de controle da estrutura fundiária têm um espaço de destaque na nova lei. Depois de ter sido discutido com organizações sociais do universo rural, em janeiro de 2014, o projeto de lei foi aprovado na Assembleia Nacional. A proposta recebeu 332 votos a favor, dados por parlamentares socialistas, ecologistas e radicais de esquerda, e 205 votos contrários, dos deputados ligados à União por um Movimento Popular, partido do ex-presidente Nicolas Sarkozy. Até o mês de abril o assunto será debatido no Senado, com previsão de aprovação definitiva ainda no final do primeiro semestre deste ano [1].

Dois cenários divergentes tecem o pano de fundo a respeito das estratégias e das prioridades estabelecidas pela nova legislação. A disputa se dá entre as organizações que defendem um sistema econômico cuja estrutura baseia-se na competitividade cada vez mais globalizada e aquelas que lutam para garantir espaços rurais diversificados e dinâmicos, com uma densidade significativa de agricultores. O primeiro cenário aposta principalmente na ampliação competitiva da agricultura francesa nos mercados internos e externos. O outro, apesar de também valorizar a competitividade, preocupa-se com a questão ambiental e a manutenção do tecido social do meio rural, duramente ameaçado pela especulação imobiliária urbana que provoca a artificialização crescente de áreas agrícolas destinadas para outras finalidades (moradias, construções industriais, vias de transportes...).

Tentando levar em conta esses dois cenários, a Lei estrutura-se em sete pontos considerados estratégicos. O primeiro busca preservar o patrimônio jurídico que oferece proteção à agricultura em seu sentido mais amplo. O Estado assegura por lei seu direito legítimo de intervir sobre o setor agropecuário, pois se trata de um setor de interesse geral e contribui para o bem-estar de toda a sociedade. O esforço para consolidar esse novo marco legal divide-se em quatro objetivos: a) garantir o acesso da população a uma alimentação equilibrada e saudável, cabendo ao Estado o papel de assegurar a convergência equilibrada entre preços e mecanismos de acesso aos alimentos; b) ampliar a competitividade da agricultura no plano regional e internacional; c) introduzir regras que garantam o bem-estar animal; d) fortalecer iniciativas de gestão e ordenamento territorial em todas as regiões e não apenas nas áreas mais férteis e de alto valor produtivo.

O segundo ponto preocupa-se em conservar a competitividade da agricultura por meio de inovações técnicas e sociais, mas que garantam a promoção dos preceitos da agroecologia [2]. Ao resgatar o protagonismo dos agricultores nos processos de gestão social, a Lei vai incentivar a criação de Grupos de Interesse Econômico e Ecológico (GIEE) como estratégia de cooperação e participação dos agricultores nas estruturas que definem as políticas públicas e a normatização das condições de trabalho no setor. Os agricultores serão estimulados a adotar práticas ecológicas e resgatar processos de produção que estão sendo abandonados por conta da crescente adoção de monocultivos. A constatação é que a policultura, uma prática que combinava produção animal e vegetal e existia em praticamente todas as regiões da França, desapareceu para dar vez à especialidade, gerando riscos ao equilíbrio ecológico.

Outra particularidade da nova Lei é a ênfase dada ao estatuto do arrendamento, um instrumento jurídico que, desde o pós-guerra, freia a especulação imobiliária e transmite segurança aos produtores não proprietários. Na atualidade aproximadamente 75% da superfície agrícola utilizada são explorados por arrendatários e não pelos proprietários. Esse foi um dos aspectos que mais causou surpresa ao grupo de brasileiros que participou da missão de estudos mencionada anteriormente, pois no Brasil a lei do arrendamento é pouco conhecida e mobilizada como forma de assegurar o acesso à terra a agricultores sem terra.

O terceiro ponto está focado na ampliação do poder de barganha e da organização dos produtores agrícolas. Pretende-se reforçar os projetos de contratualização entre os diferentes agentes que atuam dentro das cadeias produtivas (filières). Sem desejar interpor sua autoridade a qualquer custo dentro dos mercados agropecuários, o Estado pretende aprimorar a governança no interior das cadeias produtivas. Para isso, pretende agir como um mediador, intercedendo em conflitos, regulando as atividades das partes envolvidas e prestando apoio para ações de cooperação.

O quarto ponto tenta reafirmar uma das principais virtudes da agricultura francesa no século XX: a governança fundiária que conseguiu desassociar de forma positiva posse e exploração produtiva das terras. Ao fortalecer os sistemas de governança da terra, a Lei deseja deter a especulação fundiária e a concentração das unidades de explorações agrícolas %u200 que contraditoriamente não param de aumentar devido aos subsídios financeiros ligados à PAC. Para tanto, o legislador pretende reafirmar o papel estratégico exercido pelas Sociedades de Ordenamento Fundiário e de Estabelecimento Rural (SAFER), dando maior transparência ao seu processo de governança e reforçando o pluralismo dos atores que participam da sua gestão.

Desde os anos 1960, as SAFER atuam como ente de planejamento do uso das terras rurais em todas as regiões da França. Embora possuam o estatuto de direito privado, essas sociedades são compostas por representantes do Estado e das organizações sindicais dos agricultores. Para exercer seu papel de regulador fundiário, possuem o dispositivo legal de empregar o direito de preempção (preferência de compra) sobre as terras rurais colocadas à venda. Com isso, os atores regionais ligados ao mundo rural e o Estado podem monitorar e gerenciar melhor seus recursos fundiários, dando preferência à instalação de jovens, e realocar parcelas de terras com o objetivo de garantir a viabilidade socioeconômica dos estabelecimentos, além de evitar a concentração excessiva dos domínios. Uma nova estratégia vai nortear a destinação das terras pelas SAFER: o foco não será mais formar novos estabelecimentos agrícolas baseados na superfície mínima de instalação, mas priorizar a análise dos empreendimentos propostos tendo como princípio a sua viabilidade socioeconômica. Com isso, pequenas áreas podem ser destinadas a agricultores que pretendem trabalhar com produtos de alto valor agregado que não demandem grandes áreas, ou ainda que se instalem na agricultura e exerçam em paralelo outra atividade econômica (pluriatividade agrícola).

O texto da nova lei almeja também atacar um dos principais problemas da agricultura francesa: a falta de transparência jurídica das sociedades agropecuárias, que hoje já controlam mais de 60% das áreas agrícolas no país. Nas últimas décadas, os estabelecimentos agropecuários estão cada vez mais sob o controle de pessoas jurídicas. Muitas vezes essas sociedades possuem outras pessoas jurídicas entre seus associados, criando assim um mosaico de empresas que dificulta a identificação dos verdadeiros controladores do capital envolvido. A ideia com a nova lei consiste em padronizar as empresas em três tipos distintos de sociedades: micro estabelecimentos, explorações familiares (casais e/ou pais e filhos) e empresas que atuam na lógica do capital, mas com regras mais claras de funcionamento e de alocação de capital.

O quinto ponto aborda a questão dos alimentos. De um lado, pretende-se disciplinar a exportação de produtos alimentares, pois a prioridade dada ao mercado internacional, por vezes, fragiliza o consumo interno. O diagnóstico do governo indica que atualmente milhões de consumidores da França, conhecida como um país que sempre valorizou a gastronomia, alimentam-se de maneira insatisfatória. De outro lado, almeja-se aumentar a convergência entre saúde e alimentação, visto que a dieta saudável tem elevado o efeito preventivo na propagação de diversas doenças. Para tanto, serão criadas mais restrições ao uso de pesticidas, de adubos industriais de síntese e, evidentemente, de organismos geneticamente modificados. Além disso, serão ampliados os subsídios e os descontos fiscais para agricultores que investirem em sistemas de produção mais limpos. Esse quesito também prevê mais rigidez nos controles sobre o uso de medicamentos e outros produtos relacionados à saúde animal. A ideia é criar novos procedimentos para um setor que tem se caracterizado pela judicialização crescente das contendas envolvendo Estado, produtores e consumidores.

O penúltimo ponto trata do tema da formação. O governo pretende reformar o ensino agrícola, de modo a reforçar as especificidades dos conteúdos relacionados ao mundo rural. Ressalte-se que na França as principais escolas de agronomia e veterinária estão sob a tutela do Ministério da Agricultura. Essa postura certamente vai gerar embates com as estratégias gerais da Educação Superior, criadas por uma lei aprovada em 1984, que promoveu um ensino mais generalista baseado no fortalecimento de polos regionais. A meta é qualificar a visão sobre o mundo rural junto a estudantes que são cada vez mais originários do meio urbano. Espera-se com essa medida que os futuros profissionais das ciências agrárias estejam mais preparados em termos cognitivos e técnicos para compreender as características e as especificidades do campo, o modo de vida dos agricultores e os desafios que o meio rural enfrenta na atualidade.

Por fim, o governo pretende dar apoio à ampliação da cobertura vegetal e da vida selvagem, impulsionando as formas de exploração sustentável das florestas. Para isso, vai criar medidas que permitam lutar contra a importação e venda de madeira, ou de seus derivados, proveniente de cortes ilegais. Além disso, está prevista a criação de um fundo que estimule o consumo de madeira em novas construções, a estruturação de unidades produtivas coletivas e reflorestamentos, que visem aumentar a capacidade de estocagem (sequestro) de carbono.

De maneira geral, percebe-se que o atual governo francês almeja imprimir ao novo marco legal um formato abrangente, focando questões que se sobrepõem às demandas setoriais ou às tradicionais prioridades de caráter econômico e produtivo. Mesmo sem inibir a participação da iniciativa privada, a Lei do Futuro volta a destacar o papel estratégico do Estado como indutor de processos de desenvolvimento no meio rural, fortalecendo sua atuação como agente regulador na área alimentar e na sustentabilidade. Nas últimas décadas, essa atitude proativa do Estado, que caracterizou todo o período de modernização da agricultura francesa no pós-guerra, vinha sofrendo abalos internos pela supremacia da lógica neoliberal encampada, sobretudo, pelo governo anterior de Sarkozy. Se, por algum tempo, essas transformações foram vistas por muitos como inevitáveis, devido à ordem capitalista vigente, agora elas enfrentam novas resistências. Tratar das principais questões que colocam em risco a visão de um rural constituído por uma agricultura multifuncional parece ser, novamente, a aposta da futura legislação.

Indagado a respeito da ausência explícita dessa noção no texto da nova lei, seu idealizador explica que o propósito foi evitar reavivar celeumas do passado recente que contribuíram pouco para o fortalecimento do caráter multifuncional da agricultura.

Em alguns casos, ao invés de lançar planos ou mecanismos novos, a Lei sustenta-se nas estruturas e ideias bem-sucedidas ou que já estiveram no âmago da história da agricultura e do meio rural francês, como as SAFER, a Lei do Arrendamento e as distintas estruturas de cooperação entre pequenos e médios produtores. Para angariar adeptos e fortalecer essas institucionalidades, os formuladores da nova Lei esperam resgatar a memória coletiva e as tradições rurais do povo francês, que sempre atribuiu grande valor simbólico à campagne (meio rural) e aos paysans (camponeses). Almejam também estabelecer alianças com as políticas de descentralização administrativa com o propósito de planejar o desenvolvimento rural e agrícola segundo os preceitos da lógica territorial. Essa diretriz está de acordo com as iniciativas de desenvolvimento estipuladas pela Europa, que visam estimular as regiões rurais menos favorecidas do ponto de vista geográfico e socioeconômico (regiões de montanha, áridas, de difícil acesso, distantes de mercados consumidores...).

Mais do que lançar medidas priorizando demandas setoriais, inovações tecnológicas ou ajudas financeiras de natureza compensatória, a Lei busca resguardar os vínculos sociais e culturais e fortalecer institucionalidades. Às medidas cujos efeitos serão mais imediatos juntam-se outras, de longo prazo, como a que reforça o ensino agrícola enquanto elemento formulador e indutor de políticas e a que estimula novas formas de cooperação entre os agricultores, a exemplo dos GIEE. Em suma, são esforços que pretendem enfrentar os desafios futuros do mundo atual, oferecendo instrumentos para que agricultores e demais profissionais ligados ao meio rural possam fortalecer cenários em curso ou gestar novos sob a égide da sustentabilidade.

(*) Sobre os autores

Fábio Luiz Burigo é Professor do Departamento de Zootecnia e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC. E-mail: fabio.burigo@ufsc.br

Ademir Antonio Cazella é Professor do Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: ademir.cazella@ufsc.br

Yannick Sencébé é Professora do Institut National Supérieur des Sciences Agronomiques, de l’Alimentation et de l’Environnement (Agrosup Dijon – França). E-mail: yannick.sencebe@dijon.inra.fr 

Notas

[1] Na primeira semana de setembro de 2013, uma delegação brasileira constituída, sobretudo, por diretores e técnicos da Secretaria de Reordenamento Agrário do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SRA/MDA), dirigentes sindicais e pesquisadores da UFSC participantes do projeto de cooperação “Análise e intercâmbios técnico-científicos sobre experiências internacionais de ordenamento, regularização e crédito fundiário” tiveram a oportunidade de conhecer os eixos norteadores da Lei do Futuro ao serem recebidos no Ministério de Agricultura francês pelo responsável por sua elaboração. Em agosto de 2014, está sendo programada uma conferência de Bertrand Hervieu durante o I Seminário Internacional sobre Governança Fundiária previsto no quadro do projeto mencionado acima.

[2] O site agro-media.fr destaca que um dos maiores objetivos do projeto de lei é integrar “a dimensão ecológica como um elemento de competitividade”. Esse tema provocou intensos debates na Assembleia Nacional quando da aprovação da Lei.

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