terça-feira, 29 de julho de 2014

Estudo revela que agricultores familiares não têm condições de cumprir normas de uso seguro dos agrotóxicos

Texto: MANUEL ALVES FILHO
Fotos: Antoninho Perri
Edição de Imagens: Diana Melo
No Brasil, o conceito de uso seguro relacionado aos agrotóxicos é uma falácia. A constatação, em tom de alerta, é da dissertação de mestrado do farmacêutico Pedro Henrique Barbosa de Abreu, defendida recentemente na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, sob a orientação do professor Herling Alonzo. De acordo com o pesquisador, as normas contidas na denominada Lei dos Agrotóxicos, sancionada em 1989, bem como as diversas e complexas medidas técnicas descritas nos manuais de segurança, elaborados pela Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef, que representa as indústrias químicas) e por instituições públicas de saúde, meio ambiente e agricultura, não podem ser cumpridas, principalmente por parte dos agricultores familiares, que não dispõem de informações e nem de recursos para tal. “Ou seja, quando o assunto é agrotóxico, não se pode falar em uso seguro no país”, sustenta o autor do trabalho.

A pesquisa de Abreu foi desenvolvida junto a 81unidades produtivas de agricultura familiar do município de Lavras, em Minas Gerais. O pesquisador entrevistou 136 trabalhadores rurais para identificar as práticas de trabalho relacionadas aos agrotóxicos e as medidas de segurança adotadas em relação aos riscos de contaminação ambiental e/ou intoxicações humanas. O primeiro dado que chamou a atenção do autor da dissertação foi a quantidade de produtos usados nos diferentes tipos de lavoura, como café, hortaliças, grãos etc. “Nós identificamos um total de 127 produtos agrotóxicos diferentes utilizados nessas propriedades. Pouquíssimas usam apenas um tipo. A maioria usa de dois a seis, sendo que parte delas emprega até 20”, espanta-se.

Pelas declarações dos agricultores, boa parte das medidas contidas nos manuais de segurança não é cumprida, seja por falta de conhecimento e/ou condição econômica dos usuários, seja pela ausência de políticas públicas que favoreçam a adoção de práticas consideradas seguras. Abreu explica que os manuais de segurança contemplam seis etapas relacionadas ao uso dos agrotóxicos: aquisição, transporte, armazenamento, preparo e aplicação, destinação final das embalagens vazias e lavagem das roupas e dos equipamentos de proteção individual (EPIs) contaminados. “Ocorre que dentro de cada uma delas existem diversas e complexas medidas a serem cumpridas pelo agricultor. Se uma delas não for atendida, não se configura o uso seguro”.

Para comprar os produtos, por exemplo, o agricultor precisa que um agrônomo visite a propriedade e faça a prescrição dos agrotóxicos. “Na agricultura familiar, isso praticamente não existe. Na maior parte dos casos, o agricultor vai à loja, que conta com um agrônomo contratado. É ele quem prescreve o produto, sem sequer ter visitado a propriedade”. Em relação ao transporte, continua Abreu, a situação também é preocupante. Conforme descrito nos manuais de uso seguro, os agrotóxicos devem ser transportados na parte externa de caminhonetes. “Entretanto, muitos produtores dispõem apenas do carro de passeio da família, geralmente muito antigo, e é nele que carregam os produtos. Para esses trabalhadores, é completamente inviável comprar uma caminhonete para fazer o transporte descrito como seguro nos manuais”, pondera.

Nas entrevistas, o farmacêutico diz ter identificado até mesmo quem carrega os defensivos agrícolas em motocicletas ou no transporte público, em meio a dezenas de passageiros, uma vez que estes são os únicos meios de transporte acessíveis. Outro ponto delicado refere-se ao armazenamento. Os manuais dizem que o agricultor precisa manter os agrotóxicos em um armazém próprio, localizado distante de qualquer residência e de fontes ou cursos de água, e dispostos em prateleiras ou estrados adequados. Além disso, a unidade produtiva precisa dispor de tanques específicos para a lavagem das embalagens e dos utensílios utilizados no preparo dos agrotóxicos, que devem estar necessariamente ligados a fossas sépticas exclusivas. “Na prática, nós não identificamos nada disso. Normalmente, o agricultor mantém os produtos no espaço que ele tem disponível, como tulhas ou paiol, e até mesmo dentro de casa. Alguns relataram que armazenam as embalagens na própria plantação ou sob alguma árvore”.
Abreu relata ter perguntado aos agricultores de Lavras se eles utilizavam com frequência os equipamentos de segurança pessoal recomendados pelos manuais. “Uns usavam botas e chapéus e outros, macacões. Outros disseram usar saco plástico nas mãos e pano amarrado no rosto para se proteger. Poucos disseram usar todos os equipamentos indicados e nenhum deles relatou saber o modo considerado correto de colocar e tirar os equipamentos, o que obviamente compromete a segurança desses trabalhadores”. Segundo o pesquisador, a maioria admitiu, ainda, não seguir todas as exigências relativas ao preparo e aplicação. “Um exemplo é o fato de não conhecerem o período que deve ser aguardado para reentrar na área onde os agrotóxicos foram aplicados, medida impossível de ser cumprida em muitas das propriedades visitadas pelo simples fato de a área de cultivo estar localizada ao lado da residência”.

Quanto às embalagens vazias, existe uma Lei de 2002 que determina a responsabilidade das indústrias pelo recolhimento e destinação final, a chamada logística reversa. Os pontos de venda, segundo esta lei, devem funcionar também como postos de coleta. “O Brasil e as indústrias químicas se vangloriam dessa lei. Dizem que 94% das embalagens vazias retornam às indústrias. Das duas, uma: ou esse número é irreal ou ele se refere somente às embalagens utilizadas pelos latifundiários do agronegócio, os maiores consumidores de agroquímicos. Os agricultores familiares relataram, em sua maioria, queimar as embalagens como forma de descarte”, informa.

O farmacêutico faz questão de destacar que esse comportamento nada tem a ver com descuido ou despreparo do agricultor. “Para levar essas embalagens aos estabelecimentos comercias, o agricultor tem que colocá-las novamente no seu carro, o que eleva os riscos de intoxicação, e se deslocar até a cidade. Além disso, precisa obrigatoriamente apresentar nota fiscal, se não a loja não aceita. Ou seja, é preciso desburocratizar os procedimentos e criar postos de coletas públicos próximos às comunidades rurais para favorecer o descarte”, entende o pesquisador.

Por último, as normas que deveriam ser aplicadas à lavagem das roupas/EPIs usados durante o preparo e a aplicação dos agrotóxicos também não podem ser atendidas em sua totalidade. Os manuais de segurança estabelecem que a propriedade deve ter um tanque exclusivo para a lavagem das peças contaminadas, ligado a uma fossa séptica também exclusiva. Depois, a roupa tem que secar em área separada das demais peças utilizadas pela família. “Quase ninguém sabe disso. As mulheres lavam as roupas contaminadas normalmente no único tanque disponível, às vezes junto com as outras roupas da família. Ao analisarmos toda essa situação, vemos que estamos diante de dois grandes nós. Um deles diz respeito à responsabilização desses agricultores pelos riscos e danos envolvidos na utilização de agrotóxicos. O outro refere-se à imposição, pelo Estado e pelas poderosas industriais químicas, de um modelo de produção de alimentos que é insustentável e dependente de agrotóxicos, com consequente ausência de políticas públicas que favoreçam os agricultores familiares. Eles estão completamente desassistidos”, entende o autor da dissertação.

Justamente por causa dessa desassistência, acrescenta Abreu, é que não se pode acusar os agricultores familiares de “desleixo” e “inadequação” no uso de agrotóxicos. “Eles simplesmente fazem o que podem, dentro do contexto socioeconômico em que se encontram”, reforça. Um aspecto bastante curioso sobre a Lei dos Agrotóxicos, e que pouca gente conhece, é que este marco legal foi formulado com base nos princípios estabelecidos pela indústria química. Abreu afirma que após muitas pressões de movimentos sociais e discussões sobre os malefícios causados pelos agrotóxicos, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), lançou na década de 1980 um código de conduta totalmente pautado pelas indústrias químicas transnacionais. Com base nesse documento é que muitos países, inclusive o Brasil, formularam suas leis voltadas ao uso dos agrotóxicos.

Em linhas gerais, o código de conduta lançou o paradigma do “uso seguro” de agrotóxicos, conforme Abreu, para desviar as discussões sobre a necessidade dos países de priorizar e incentivar modelos de produção com bases agroecológicas, reduzindo a produção, comercialização e utilização de agrotóxicos. “Acontece que esse código considerava parâmetros das indústrias químicas utilizados em ambientes absolutamente controlados, os quais, como ficou claro através do caso Shell/BASF em Paulínia, também são totalmente questionáveis. Obviamente, o mesmo não poderia ser aplicado a um ambiente externo, como o da agricultura. Desse modo, segundo o entendimento/interesse dos fabricantes, o problema da contaminação ambiental e da intoxicação humana não está no produto em si, mas na forma como ele é usado. Em outras palavras, a indústria transferiu a responsabilidade para o trabalhador por qualquer problema que ele possa ter”, considera o autor da dissertação, que contou com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão vinculado ao Ministério da Educação.

O Brasil é um dos países que mais consomem agrotóxicos no mundo. Estima-se que esse consumo alcance a marca de 5,2 litros por habitante/ano. Em 2012, último período com dados consolidados, as indústrias químicas que produzem agrotóxicos faturaram US$ 9,4 bilhões no país. O uso intensivo dos defensivos agrícolas tem causado sérias consequências à saúde dos brasileiros, conforme registros do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), órgão ligado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Segundo o Sinitox, entre 1999 e 2009 foram notificadas 62 mil intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola no Brasil. Ainda que soe elevado, esse dado provavelmente está muito aquém do número real de casos, por causa do fenômeno da subnotificação. O próprio Ministério da Saúde estima que para cada caso notificado, outros 50 deixam de ser registrados.

Publicação

Dissertação: “O agricultor familiar e o ‘uso (in) seguro’ de agrotóxicos no município de Lavras (MG)”
Autor: Pedro Henrique Barbosa de Abreu
Orientador: Herling Alonzo
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
Financiamento: Capes


EcoDebate, 15/07/2014

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