quinta-feira, 24 de julho de 2014

Ouro do Sertão

Publicado em Domingo, 15 Junho 2014
Escrito por Convívio Cerrado

"Certa vez catamos o suficiente pra encher um porta-malas de um Fiat 400l. Comemos pequi até “enfarar”, como dizem lá no norte de Minas. Assim como outros frutos do cerrado, de alguns anos para cá o pequi tem sido cada vez mais valorizado. Pesquisadores descobriram suas propriedades nutricionais e chefes de cozinha têm “usado e abusado” dele como ingrediente para o preparo das mais variadas receitas. Mas, para os povos dos sertões e das veredas, ele jamais perdeu seu valor. O pequi é o verdadeiro ouro do sertão.
Não acredite em quem diz que o cheiro do pequi é forte, enjoativo; é preciso experimentar para realmente conhecer. Não tente se convencer que é bom, deixe-se ser convencido. Este é o Caryocar brasiliensis, mais que um vegetal, um símbolo de cultura, persistência e tradição de um povo. No livroCerrado: espécies vegetais úteis, seus autores dedicam sete páginas ao pequi (também conhecido como piqui, piquiá ou piqui-do-cerrado), discorrendo sobre sua ocorrência, distribuição, floração, botânica, uso, entre outros. Pode ser consumido com arroz, feijão, galinha, ou batido com leite e açúcar. Seu uso medicinal tem efeito tonificante, sendo usado contra bronquites, gripes e resfriados, é expectorante, e o chá de suas folhas é tido como regulador do fluxo menstrual.
Mas o pequi é mais que isso!

Há histórias de crianças “filhas do pequi” – aquelas que nascem exatamente nove meses após a temporada do fruto, pois ele é tido também como afrodisíaco. Lamber chapéu de couro é a única alternativa para retirar seus espinhos da língua daqueles mais descuidados. Conta-se também que as índias esfregavam o fruto nas partes íntimas para evitar que seus companheiros as procurassem (algo que não devia adiantar muito porque, para quem gosta, o aroma do pequi é irresistível). O pequizeiro é árvore robusta e sua flor é de excepcional beleza. Seu sabor é único (assim como o é o do buriti e o do jatobá, entre outros), não há fruta que se possa comparar. O pequi deve ser colhido no chão, sinal de que está no ponto; se for colhido ainda no pé, ele não amadurece e prejudica a próxima safra daquela árvore. E catar pequi não é uma tarefa leve, por mais simples que possa parecer o ato de se agachar para pegar um fruta do chão. Você abaixa, pega, e levanta; abaixa, recolhe, levanta, abaixa, cata e levanta tantas vezes que haja coluna e joelho pra aguentar!

A casca é dura; por dentro, às vezes um, dois ou quatro frutos amarelos, carnudos. Dizem que o nome vem do tupi e significaria “pele espinhenta”. Se morder já era! – milhares de espinhos minúsculos que recobrem o caroço vão encher sua boca e língua. Tem que raspar com os dentes, roer mesmo. E depois de roído, você ainda pode colocar ao sol para secar, abrir o caroço e comer a amêndoa, que, em certos lugares, chamam de “bala”.
Muita gente congela o fruto para ser consumido ao longo do ano, mas ainda não chegaram a um consenso se ele preserva mais o sabor e maciez sendo congelado depois de cozido ou in natura. Por ser muito apreciado na região Centro-Oeste e em estados adjacentes, vários municípios já realizam uma festa em celebração ao pequi, uma maneira de agradecer à dádiva deste fruto da savana brasileira. Começando por Minas, podemos ir a Montes Claros, que já vai pra 21ª Festa do Pequi. Indo para Curvelo, é possível encontrá-lo em compotas ou em barras, tal como uma rapadura. Já em Alto Belo, distrito de Bocaiúva, há uma competição para ver quem come mais pequi (cru) e uma premiação também para o maior pequi colhido. O do ano passado, com casca e tudo, chegou a impressionantes 1,5kg! Em Goiás, pode-se passar em Damianópolis, onde um doce de leite preparado com o óleo do pequi é simplesmente inesquecível.

Ainda na divisa goiana, em Crixás, noroeste do Estado, há também a celebração da fruta da estação. Tive o prazer de presenciar o Festival do Pequi em sua quinta edição. No espaço da feira, diversas barraquinhas onde pratos típicos da culinária local eram recriados aproveitando o pequi. Em outro canto da cidade, uma oficina ensinava, a quem quisesse, requintadas e deliciosas receitas, tendo o fruto como principal ingrediente. No dia seguinte, desfile em comemoração ao festival e ao aniversário da cidade. Muitos carros alegóricos com crianças caracterizadas de bandeirantes, indígenas, mineradores, gente que colonizou aquela região.

Quantos deles serão “filhos do pequi”?
*publicado originalmente na revista Overmundo, nov-dez/2011

texto & fotos: Jean Marconi

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