quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Da Amazônia para o Mundo

Por eduardo schenberg | 1 de setembro de 2014
Em 1852 o explorador britânico Richard Spruce trouxe ao conhecimento da ciência ocidental o uso de uma bebida ameríndia, que hoje sabemos ser amplamente distribuída na bacia amazônica. Conhecida por dezenas de nomes em várias línguas diferentes, a ayahuasca é considerada medicina sagrada pelos povos que a usam há séculos. No Peru, por exemplo, tem seu uso medicinal e ritualístico legalizado, sendo considerada patrimônio cultural e histórico.

ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO BLOG DO PLANTANDO CONSCIÊNCIA

Ao redor da segunda metade do século XX, durante a intensificação da colonização amazônica, a ayahuasca se espalhou para outras regiões do continente. No Brasil, esse conhecimento indígena foi adotado e modificado por seringueiros e exploradores que deram origem a religiões reconhecidas e regulamentadas pelo governo. Mais recentemente, o uso da ayahuasca se espalhou por meios urbanos e atingiu diversas cidades, como, por exemplo, Nova Iorque, Rio de Janeiro, Lima, Santiago, Barcelona e Cidade do Cabo. Em alguns países, no entanto, ao contrário de medicina sagrada, é considerada droga, sendo inclusive proibida.

Esta expansão, iniciada no século XX, está se acelerando no século XXI, com pessoas de diversas partes, culturas e crenças buscando nos rituais com ayahuasca alívio para suas ansiedades, frustrações e dificuldades da vida moderna. Pacientes com traumas profundos, pessoas com depressão e também dependentes químicos buscam na ayahuasca soluções que não têm conseguido encontrar na medicina ocidental. Indivíduos considerados saudáveis encontram nestes rituais transcendência, iluminação, insights, criatividade e reconexão com algo que lhes parece ter sido esquecido há muito tempo. Cresce uma cultura global em torno da prática ameríndia ancestral, com a ayahuasca alcançando países da América do Norte, África, Europa e mesmo Oceania. E pessoas de todo o mundo viajam para a Amazônia com esperanças depositadas na bebida. Desta mescla cultural, emergem novas idéias, crenças, filosofias e também dificuldades desconhecidas anteriormente, com alguns relatos de problemas acompanhando os muitos casos de efeitos benéficos. Pode então o uso ritual dessa bebida causar danos a saúde? Pode o uso da ayahuasca induzir psicose, delírio, alucinações, paranoia e colocar o indivíduo em perigo?

De 25 a 27 de Setembro de 2014, centenas de pessoas se reunirão em Ibiza, Espanha, para debater estas e muitas outras questões na Conferência Mundial da Ayahuasca. O evento é organizado pelo International Center for Ethnobotanical Education, Research and Service (ICEERS), uma associação sem fins lucrativos dedicada à pesquisa, educação e integração de conhecimentos etnobotânicos na sociedade contemporânea. A conferência será palco da discussão mais ampla e profunda sobre o tema em muitos anos. Para tanto, conta com apoio de diversas organizações ao redor do mundo, em especial da Beckley Foundation e da RiverStyx Foundation. A primeira, criada e dirigida por Amanda Feilding em 1998, é pioneira no debate sobre a reforma da política global de drogas e na pesquisa científica sobre o potencial benéfico de substâncias psicodélicas como LSD, MDMA, psilocibina e ayahuasca. A segunda é uma fundação privada orientada para o avanço do cuidado de pacientes terminais e para a reforma das práticas e políticas sobre drogas, e financiou pesquisas psicodélicas nos últimos seis anos.
A abertura da conferência ficará por conta do psiquiatra chileno Claudio Naranjo, que dedicou 40 anos de sua carreira ao estudo de ferramentas expansoras da consciência e sua integração na prática terapêutica. Os aspectos clínicos relacionados ao uso da ayahuasca serão ainda debatidos em relação ao tratamento da dependência química, da depressão e do transtorno do estresse pós-traumático, entre outras condições. Ainda que as evidências experimentais sobre os usos terapêuticos dessa bebida permaneçam escassas, a proliferação dos relatos de casos tem suscitado a procura de tratamentos com ayahuasca. Entre os palestrantes nesta seção, destaque para o Dr. Gabor Maté, do Canadá, que debaterá suas experiências clínicas (e políticas) com o uso terapêutico da ayahuasca com os Drs. Josep Maria Fábregas, psiquiatra espanhol, Rafael Sanchez, médico brasileiro, e Anja Loizaga-Velder, doutora em psicologia médica e diretora de pesquisa do Instituto Nierika, no México.

Pesquisas científicas sobre uso clínico e efeitos fisiológicos da ayahuasca serão apresentadas em sessão patrocinada pela Beckley Foundation. Participarão desta sessão os brasileiros Paulo César Ribeiro Barbosa, da Universidade Estadual de Santa Cruz, e Dráulio Barros de Araújo, do Instituto do Cérebro da UFRN, que têm conduzido pesquisas de ponta com neuroimagem e aspectos cognitivos da ayahuasca. Eles farão diálogo rico com o pioneiro da pesquisa biomédica da ayahuasca, Jordi Riba, e com José Carlos Bouso, diretor de projetos científicos da ICEERS. Estes temas serão ainda explorados em série de pequenas apresentações selecionadas pelos organizadores, incluindo palestra minha, onde apresentarei resultados inéditos sobre os efeitos da ayahuasca no cérebro. Estes resultados foram obtidos em pesquisa pioneira realizada nos últimos três anos, com financiamento da FAPESP, conduzida na UNIFESP e apoiada pelo Plantando Consciência,organização sem fins lucrativos que é também apoiadora oficial do Congresso Mundial da Ayahuasca.
A riqueza etnobotânica da ayahuasca, incluindo as plantas usadas e modos de preparo, ficarão a cargo do famoso escritor e pesquisador Jonathan Ott, de Glenn Shepard, doutor em etnobotânica e de Juan Gonzáles Simonneau, psicólogo envolvido na conservação e proteção do conhecimento sobre plantas medicinais. Os desafios para o uso sustentável da ayahuasca serão discutidos por Joshua Wickerham, especialista em sustentabilidade, Dennis McKenna, pioneiro no estudo da ayahuasca em diversas áreas, incluindo etnofarmacologia, botânica, química e farmacologia, e Roldán Rojas, diretor do Fundo Amazonía Viva, do Peru, que trabalha na conservação de comunidades florestais na Amazônia Peruana.

Mas além das finalidade clínicas e terapêuticas, a ayahuasca é também utilizada para desenvolvimento pessoal, tema que será abordado pelo antropólogo Luis Eduardo Luna, do centro Wasiwaska, pioneiro no estudo do Vegetalismo Peruano e de vários aspectos importantes da experiência com a ayahuasca. Ele dialogará com Danae Saenz, psicóloga clínica do Chile, que tem extensa experiência com o uso amazônico da ayahuasca, com Manuel Villaescusa, psicólogo com experiência no uso da ayahuasca no tratamento da dependência e com Josep Maria Fericgla, que viveu na Amazônia ecuatoriana entre 1991 e 2009.

Outra questão importante com relação aos usos da ayahuasca diz respeito à participação feminina no mundo ayahuasqueiro. Historicamente, nas práticas e discursos sobre ayahuasca, as mulheres tem sido colocadas em segundo plano. Preconceito, discriminação e sexismo serão debatidos por Carmen Vicente, curandeira da região limítrofe entre Ecuador e Perú, guardiã do Fogo Sagrado de Itzachilatlan, Daniela Peluso, antropóloga sócio-cultural, doutora pela Columbia University, Aline Mast, holandesa participante de uma Igreja do Santo Daime exclusiva para mulheres e a artista e psicóloga Clancy Cavnar, autora de artigo recente sobre os efeitos da participação em rituais de ayahuasca na identidade de gays e lésbicas.

O uso religioso, por sua vez, será tema das apresentações da antropóloga Rosa Virgínia Melo, do Brasil, do doutor em religião Andrew Dawson, do Reino Unido, do artista Holandês Rini Hartman e do jornalista espanhol Juan Carlos De La Cal. A sessão tratará da expansão do uso religioso da ayahuasca ao redor do mundo, considerando as consequências da ampliação do uso da bebida e os desafios que vem pela frente às principais religiões ayahuasqueiras: Santo Daime, União do Vegetal (UDV) e Barquinha, todas de origem brasileira.

Mas desafios aguardam também os usos não religiosos da ayahuasca, dado que o principal componente psicoativo da bebida, a N,N-dimetiltriptamina (DMT), é ilegal em todo o mundo, tendo sido classificada como perigosa, viciante e sem qualquer potencial benéfico. Entretanto, esta classificação política e jurídica, que entrou em vigor em alguns países no final dos anos 60 e rapidamente se espalhou pelo mundo todo no início dos anos 70, não tem base em evidências científicas. Nem a ayahuasca, nem a DMT, são substâncias viciantes. Ambas são de baixíssima toxicidade e tem seus potenciais benéficos cada vez mais reconhecidos por pesquisas científicas. É aqui, então, que encontramos o maior viés na maneira como as culturas ocidentais colonizadoras tratam a ayahuasca: proibição sem evidências claras de danos sérios e persistentes, mas mesmo frente a um crescente número de evidências de potenciais benéficos, a aceitação do uso ritual da ayahuasca continua enfrentando forte resistência.

Portanto, se esta resistência ao uso ritual da ayahuasca não se deve simplesmente aos fatos científicos conhecidos, será necessário expandir a discussão para outras áreas do conhecimento humano. É neste ponto que torna-se crucial considerar o histórico da proibição das drogas e suas consequências para o uso ritualístico de uma bebida psicoativa em um mundo proibicionista. Este assunto será abordado pelo convidado especial Ethan Nadelmann, diretor da Drug Policy Alliance. Nadelmann é um dos maiores defensores do fim da guerra contra as drogas em todo o planeta e debaterá o tema com Adèle Van Der Plas, da Holanda, Rodrigo Gonzáles Soto, do Chile, Diego de Las Casas, da Espanha, e Jeffrey Bronfmann, Mestre da UDV nos EUA. Bronfmann foi o grande responsável pela vitória desta Igreja na Suprema Corte dos EUA que, por unanimidade, garantiu o uso religioso da ayahuasca como legítimo naquele país, mesmo a DMT sendo ilegal.

Mas estas contradições, que levaram a ayahuasca de medicina sagrada a droga proibida, dificilmente serão resolvidas apenas por estudos e experimentos científicos, uma vez que que a causa do status jurídico atual da ayahuasca não decorre apenas das informações científicas. As dificuldades da sociedade contemporânea com a ayahuasca se originaram no processo colonizatório que marginalizou saberes e práticas intimamente relacionados aos estados não ordinários de consciência. Desde tempos imemoriais, estes estados são parte integral da vida comunitária na maioria das sociedades humanas, com a rara excessão da cultura industrial-capitalista hoje globalizada. Nesta cultura, qualquer estado de consciência diferente da vigília comum e dos sonhos é visto como patológico. Perseguidos e banidos de diversas formas ao longo de séculos, estes estados de consciência são hoje tema estranho ao cidadão comum e mesmo à maioria dos estudiosos da psique, da mente e do cérebro.

No que se trata destes estados de consciência, portanto, os especialistas não são os cientistas, nem os médicos, tampouco os psicólogos ocidentais com sua limitada experiência pessoal e comunitária. Os experts no caso são os curandeiros, xamãs, vegetalistas, pajés e afins. Estas pessoas recebem status privilegiado em suas próprias culturas justamente por sua experiência nos reinos não-ordinários da psique e de como utilizá-los em benefício de toda a sociedade. São estes indivíduos que detêm conhecimento profundo sobre como utilizar estas ferramentas de forma positiva, curativa e transformadora. E a abertura para o diálogo e a escuta despida de preconceitos é fundamental para o desenvolvimento de uma ciência verdadeiramente multidisciplinar sobre a ayahuasca. Portanto, serão muito bem vindos, na mesa principal da conferência, líderes de culturas tradicionalmente ayahuasqueiras como o Taita Juan Bautista Agreda Chindoy, da Colômbia, Siã Kaxinawá, chefe Huni-Kuin no Acre, Brasil e Taita Franklin Columba, curandeiro do Equador. Estes palestrantes, herdeiros diretos destes saberes ancestrais, farão um panorama dos usos centenários da ayahuasca em rituais de cura individual e como ferramenta de coerência e sobrevivência de seus respectivos grupos.

Pode então um conhecimento ancestral sobre a consciência humana ser relevante a uma sociedade globalizada, atualmente ameaçada pelos efeitos colaterais de sua própria ciência e tecnologia? Pode a ciência moderna ter se equivocado sobre aspectos fundamentais da consciência humana? Pode o uso ritual da ayahuasca nos ajudar a resgatar uma concepção mais ampla da consciência? Poderia esta expansão da consciência nos auxiliar na criação de um novo modo de pensamento que alimente atitudes mais conectadas com a realidade ecológica da qual somos parte? Pode a ayahuasca ser um instrumento na construção de um novo paradigma de desenvolvimento humano?

Buscando respostas para estas questões, e caminhando em direção a umasíntese coerente entre o pensamento ocidental e a sabedoria ancestral, além das palestras e diálogos, o evento contará com a projeção de Medicina. Este documentário, dirigido e produzido por Marcelo Schenberg, diretor executivo do Plantando Consciência, será exibido no festival como trabalho em fase de produção, em uma edição introdutória de 10 minutos. Outros filmes relacionados ao tema também farão parte do fórum de filmes que integra o evento, muitos ainda inéditos.

Medicina combina uma investigação do conhecimento perene, guardado por descendentes de povos ancestrais, com a disciplina acadêmica e científica. Em busca de uma síntese capaz de promover um novo paradigma não apenas na área da saúde, mas frente aos grandes mistérios da vida e morte, o filme trata de uma nova forma de se estar no mundo.

É esse diálogo rico e verdadeiramente multicultural que pode fazer desta conferência um marco histórico para todos os interessados na ayahuasca. E, ao tornar esta conversa possível, os organizadores se destacam por sua visão ampla e profunda sobre o tema. Que estejamos todos, além de bem preparados para nossas apresentações, dispostos a escutar profundamente a sabedoria e conhecimento dos demais envolvidos na mesma jornada de forma que esta conferência deixe suas marcas reverberando por muito tempo.
Marcas que ficarão registradas, definitivamente, no livro “Ayahuasca Shamanism in the Amazon and Beyond”, editado por Beatriz Labate e Clancy Cavnar e com lançamento já programado para esta conferência. Em sintonia com muito do que podemos esperar do congresso como um todo, o livro, publicado pela respeitadíssima Oxford University Press, “discute como a epistemologia e ontologia ameríndia, relacionada a rituais xamânicos na amazônia, se espalhou pelo mundo ocidental e como a relação entre culturas indígenas, mestiças e cosmopolitanas dialogam e transformam estas tradições da floresta.”

Caberá portanto, a todos os envolvidos, aprofundarem, expandirem e diversificarem o diálogo, com vistas a usos saudáveis, transfromativos, curativos e seguros da ayahuasca, na Amazônia e no Mundo.

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