domingo, 21 de setembro de 2014

Notas rápidas sobre o IV Simpósio Internacional de Cannabis Medicinal

Do site:
http://www.cannabica.com.br/

Simpósio reuniu ativistas, pacientes e acadêmicos que se organizam para lutar contra o atraso brasileiro, que não se pode mais tolerar

Apresentação

É com grande prazer que publicamos o texto do historiador Rafael Morato Zanatto sobre o IV Simpósio Internacional de Cannabis Medicinal, mas é com pesar que notamos que passados alguns meses do evento, nada avançou. A ANVISA não moveu um dedo e as forças reacionárias continuam a se artícular. Ainda bem que temos, noutro lado da moeda, a SUG 8, audiência pública que tramita no Senado Federal, por iniciativa de André Kiepper, pesquisador da Fiocruz. É para amplificar o alcance da voz da SUG que a Cannábica apóia a campanha que está coletando doações para financiar o ativismo em Brasília. Kiepper está, com muita transparência, divulgando nas redes sociais o emprego dos recursos e o montante arecadado. É buscando ampliar também a voz do simpósio que esse texto tem seu lugar. Boa leitura.

Entre os dias 15 e 17 de maio ocorreu na Cinemateca Brasileira o IV Simpósio Internacional de Cannabis Medicinal. O evento organizado peloCEBRID/Maconhabras, sob a direção do professor Elisaldo Carlini, da UNIFESP, reuniu pesquisadores brasileiros e estrangeiros, pacientes que usam maconha medicinal, ativistas, políticos, e os representantes da ANVISA e da SENAD.

A ideia de usar a maconha para fins medicinais não é novidade aqui no Brasil. Elisaldo Carlini estuda maconha a mais de 40 anos, motivado pelo então professor José Ribeiro do Vale, inteligente e perseverante no estudo das plantas medicinais, em uma época que o corporativismo médico atacava a fitoterapia e as medicinas tradicionais para implantar drogas produzidas segundo os critérios industriais. E a maconha, numa dessa saiu do rol das terapias, sendo amaldiçoada como maldita, coisa de negros, incultos e pobres. Importaram maconha estrangeira da Grimault para se diferenciar desta gente “não branca”. Até que a maconha foi banida completamente das práticas médicas oficiais. Sobreviveu no trabalho de Ribeiro do Vale e Carlini, discípulo e intelectual tipicamente brasileiro formado entre aqui e alhures (Antônio Cândido – Formação da Literatura Brasileira).

Presando pelo desenvolvimento da pesquisa no país, o I Simpósio ocorreu em 1995, trazendo como tema o Tetraidrocanabinol como medicamento. A tentativa de debater sobre o emprego da maconha no combate a náusea e o vômito, ocasionado pela quimioterapia do câncer, visava atualizar o país segundo as práticas médicas que estavam sendo testadas na Europa e nos EUA. A ideia pareceu absurda aos médicos e ao representante da Sociedade Brasileira de Oncologia, que se assombraram com a possibilidade de receitar maconha aos seus pacientes. A evidente incompetência dos oncologistas brasileiros em debater o tema sem preconceitos emperrou qualquer possibilidade de dar acesso ao tratamento aos pacientes brasileiros. No II Simpósio foi realizado onze anos depois, em 2005. A estratégia adotada pelo professor Carlini foi outra. Dessa vez, optou por atacar o mito de que a maconha é tão prejudicial quanto a heroína, comparação que vigora na Convenção Única de Narcóticos, de 1961, na ONU. No simpósio que teve a presença de especialistas nacionais e estrangeiros, e de altos escalões dos Ministérios da Saúde, Educação e Justiça, foi aprovada a moção que o governo brasileiro deveria dirigir-se a Assembleia Geral das Nações Unidas para solicitar a retirada da planta medicinal da lista das drogas proscritas. Porém, não houve nenhuma resolução do governo brasileiro. Em 2010, foi realizado o III Simpósio, que tomou como diretriz a formação de uma Agência Nacional da Cannabis Medicinal, para regular a substância no Brasil. Segundo Carlini, “o sucesso acadêmico do simpósio foi completo, mas sem nenhum resultado prático. O governo brasileiro não tomou nenhuma providência”.
2014. O IV Simpósio começou animado pela possibilidade de alvejar a proibição do uso da maconha para fins medicinais, em particular no tratamento da Epilepsia, dor neuropática, no tratamento do câncer e da esclerose múltipla. As mesas foram compostas por especialistas nacionais e estrangeiros sobre estas “eventualidades clínicas”, ao lado de pacientes brasileiros que já realizam seu tratamento com a maconha.

As mães Katiele Fischer e Margarete Santos relataram como tratam as crises epiléticas de seus filhos com o CBD. O caso de Katiele ficou conhecido por ter conquistado na justiça o direito de importar o óleo de cannabis dos EUA. Margarete Santos relatou que por conta das dificuldades de importação, muitas vezes o tratamento é interrompido, e que pelo elevado custo, estimado em R$ 4.000,00 mensais, acaba não sendo acessível a muitas famílias. Por seu depoimento ficamos sabendo ainda da existência de um médico que pesquisa maconha e trata de seus pacientes, com óleos fabricados por ele mesmo. O atraso do Brasil é evidente, apesar dos trabalhos de Carlini sobre o tratamento de Epilepsia com o CBD. Segundo o professor, “no Brasil, ninguém leu os trabalhos sobre epilepsia e cannabis que realizei na década de 1970. Isso se deve a um bloqueio cultural de nossos médicos”.

Ouvimos ainda os relatos dos pacientes Gilberto Castro e Sidney, sobre o tratamento de Esclerose Múltipla com e sem maconha, onde constatamos que sem a cannabis, o tratamento convencional é estabelecido a base de injetáveis e seus muitos efeitos colaterais, como náuseas, queda de cabelo e cegueira temporária. Juliana Palioneli e Maria Antônia nos relataram como a maconha, apesar de proveniente do crime organizado, é a alternativa que ambas encontraram para aliviarem as dores de que padecem. Já Rafael Salles Cabreira relatou-nos o uso de maconha para aliviar dores no Rim, e foi com horror que ficamos sabendo que o paciente está sofrendo a acusação de tráfico internacional, por importar sementes especiais para o fabrico de seu remédio. Já Douglas Godoi nos emocionou ao relatar de que modo a maconha o ajudou durante o tratamento de seu câncer de testículo e o permitiu se alimentar melhor, fator crucial para uma boa resposta ao tratamento.

O relato dos pacientes foi acompanhado por conferências de especialistas do Canadá, Reino Unido e EUA, ao lado dos especialistas brasileiros. O que ficou evidente é que a cannabis medicinal é um sucesso no estrangeiro para os casos clínicos tratados pelo simpósio. Os pacientes desses países contam com profissionais especializados, com produtores registrados ou mesmo laboratórios que fabricam cápsulas ou sprays de maconha, como o Sativex, da G.W. Farmacêutica. Sobre a experiência canadense, Mark Ware descreveu-nos como receita a cannabis, como realizam programas de instrução dos médicos para a substituição dos opiáceos com maconha, segundo ele, mais adequadas pelo efeito colateral risível e o não desenvolvimento de tolerância, tal qual ocorre com a morfina. Ainda nos disse que os pacientes canadenses preferem as flores de cannabis às cápsulas, evidenciando que a cannabis in natura é uma ótima opção para o Brasil. O Dr. Denis Bichuetti disse-nos que nosso país conta apenas com metade do arsenal médico disponível em outros países, e ao mesmo tempo, permite a presença de medicamentos banidos, como o Viox, que comprovadamente provoca arritmia cardíaca após cinco anos de uso.

Sobre a pergunta se os pacientes que fazem uso de cannabis medicinal são criminosos, foi chamado o Ex-Ministro da Justiça Miguel Reale Jr. Segundo ele, “nossos legisladores são covardes. A finalidade sendo reconhecida – que o uso medicinal da cannabis é um bem – não se pode configurar um crime. É possível demonstrar que, para salvaguardar um bem maior, se viola um bem menor. A saúde tem que vir em primeiro lugar, em comparação aos malefícios presumíveis. O fim terapêutico existe em si. A conduta em si mesma em sua forma concreta que a define, não configura um crime.”

Apesar disso, a recusa da ANVISA mobilizar a maconha da lista F 2, das drogas proscritas, para a C1, de substâncias controladas demonstrou a indecisão de Dirceu Barbano, diante das pressões politicas dos setores conservadores. Em vinte dias o que parecia fato para Klassman, representante da agência, foi tragado e novamente varrido para debaixo do tapete. O advogado Emilio Figueiredo questionou até que ponto o enquadramento da maconha na lista das drogas proscritas não fere a democracia, questionando porque o Brasil não tem o direito de deliberar onde essa planta vai ser enquadrada? E ainda disse que o maior problema da lei de drogas no Brasil é a falta de critério objetivo para distinguir usuário de traficante: “O que mais me incomoda é o elevado número de jovens presos por tráfico de drogas no país. De 2006 para a 2014 saltamos de 60 para 140 mil pessoas presas por tráfico de drogas. Isso significa um aumento de 130%. Advogo para usuários medicinais e é muito triste ver alguém ser preso como traficante por simplesmente cultivar flores no Brasil”.

Em uma de suas falas, o professor Carlini defendeu que acompanhado da facilitação da importação do óleo de maconha, deveremos combater o mito arraigado na cultura médica brasileira de que a maconha é uma erva maldita. Para Carlini, temos a plena capacidade de produzir o remédio aqui no Brasil, o que reduziria o custo e ampliaria o acesso do medicamento. Em suas palavras, “Não podemos achar que comprar maconha na esquina, nas bocadas, irá suprir as necessidades daqueles que não terão dinheiro para comprar o medicamento importado. Não defendemos essa posição, não recebemos um centavo dos laboratórios. Somos sim favoráveis ao registro dos medicamentos estrangeiros, mas temos capacidade de fazer no Brasil outro registro do produto – fabricar extratos de boa qualidade. O que temos que fazer é lutar, temos que tentar convencer os médicos. A burocracia brasileira é o horror dos horrores. As leis trabalham contra o povo brasileiro!” As palmas ecoaram pelo auditório da Cinemateca Brasileira.

A luta pelo acesso à cannabis medicinal foi amplificada pelos debates travados no IV Simpósio. A ANVISA retrocedeu, e dela não podemos esperar qualquer resolução. Sua estratégia mais progressista é entregar aos laboratórios estrangeiros os lucros da incorporação da cannabis no rol das drogas controladas. O Conselho Federal de Medicina em complemento lançou uma nota dizendo que a maconha fumada não possui utilidade medicinal, no mesmo momento em que um médico carioca desafia seus pares e a ignorância, declarando que já trata seus pacientes com cannabis, e para isso, ele mesmo fabrica, pesquisa, e ministra tanto o CBD quanto o THC. Tal proclamação do CFM apenas demonstra que estamos a empreender uma batalha contra setores específicos da sociedade, que abastecem seus cofres ao defender os interesses da indústria farmacêutica, tratando da saúde do povo como reserva de mercado. O Simpósio reuniu ativistas, pacientes e acadêmicos que se organizam para lutar contra o atraso brasileiro, que não se pode mais tolerar.

* Doutorando em História e Sociedade pela UNESP-FCL Assis, mestre pela mesma instituição. É pesquisador associado do grupo Maconhabras/CEBRID-UNIFESP e sócio-fundador da Associação Cultural Cannabica de São Paulo.

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