quarta-feira, 25 de março de 2015

Lei de Patentes é porta da biopirataria, aponta tese

Campinas, 16 de março de 2015 a 22 de março de 2015 – ANO 2015 – Nº 619


Pesquisador sustenta que legislação de 1996 resultou na privatização da biodiversidade

Fotos:Dário Crispim, Isaías Teixeira
Edição de Imagens: Fábio Reis
No final da década de 1990, a empresa japonesa Asahi Foods registrou um pedido de patente para o cupuaçu, fruto amazônico semelhante ao cacau e que possui uma série de propriedades benéficas para a saúde. Além de patentear o fruto, a empresa registrou a marca cupulate, um tipo de chocolate feito a partir de amêndoas do cupuaçu. O cupulate havia, no entanto, sido desenvolvido no Brasil pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). Por 20 anos, qualquer exportação brasileira não poderia usar o nome cupuaçu nem cupulate, sem o pagamento de royalties à empresa japonesa. Graças a uma mobilização da comunidade amazônica, a patente foi derrubada em 2004.

Casos semelhantes se seguiram com a copaíba, andiroba, pau-rosa e muitas outras árvores e plantas da flora brasileira das quais são extraídos princípios ativos para cosméticos, energéticos e fármacos. Os exemplos, citados pelo economista e pesquisador da Unicamp Fábio Eduardo Iaderozza, dimensionam, de acordo com ele, os impactos da Lei de Patentes (nº 9.279) sobre a biopirataria. O termo refere-se ao monopólio de recursos biogenéticos ou do conhecimento de comunidades tradicionais, por indivíduos ou instituições, sem autorização e contrapartidas ao Estado e às comunidades detentoras. A Lei 9.279 foi promulgada em 1996 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Em seu estudo de doutorado defendido recentemente junto ao Instituto de Geociências (IG) da Universidade, o economista sustenta que a lei abriu caminhos para a “privatização da biodiversidade e do conhecimento tradicional associado às riquezas naturais.” A legislação, salienta o pesquisador da Unicamp, tem permitido que as riquezas naturais contidas em território nacional, como aquelas oriundas da biodiversidade, se tornem monopólio de grandes empresas de capital estrangeiro por 20 anos. Com a evolução da engenharia genética, o acesso à biodiversidade passou a ser questão estratégica, afirma.

“Vou lhe dar um exemplo: a floresta amazônica, uma imensidão. Como é possível localizar naquela grande variedade de material genético algo que possa ser transformado numa mercadoria? O caminho mais rápido e mais barato é através de comunidades tradicionais que lidam há séculos com a biodiversidade. São os índios, quilombolas, ribeirinhos, pescadores, pessoas e comunidades que vivem na floresta. Eles conhecem cada planta, cada bichinho”, exemplifica Fábio Iaderozza.

De acordo com ele, empresas internacionais organizam expedições, chamadas de bioprospecção, para se aproximar e conquistar a confiança destas comunidades. Sob o respaldo da legislação, essas empresas se apropriam do conhecimento tradicional das comunidades, revela. Princípios ativos de plantas são patenteados, tendo o monopólio sobre o uso por 20 anos, sem nenhum tipo de contrapartida às comunidades. Qualquer tipo de uso requer o pagamento de royalties a essas companhias, critica o economista.

“Os processos de bioprospecção, que são incursões na floresta para procurar algo que seja viável mercadologicamente, e que muitas vezes contam com as informações das comunidades tradicionais, podem ser definidos também como biopirataria. Um dos impactos para essas comunidades é a chamada desterritorialização. Após apossar o conhecimento das comunidades tradicionais, há uma separação do produtor direto dos seus meios naturais de produção”, acrescenta.

O doutorado de Fábio Iaderozza foi orientado pela professora Arlete Moysés Rodrigues, que atua junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia do IG. Iaderozza atua como professor da Faculdade de Economia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e do curso de Economia da Facamp (Faculdades de Campinas).
Acumulação primitiva e espoliação

As práticas de bioprospecção se assemelham, conforme o pesquisador do IG, ao que Karl Marx descreveu como acumulação primitiva para designar a origem do capitalismo. “Tal acumulação teve como fonte de alimentação a exploração das colônias ultramarinas por meio de saques e monopólios mercantis. O que caracteriza essa prática como muito próxima ao processo de acumulação capitalista nos seus primórdios é exatamente a sua associação às antigas formas de expropriação: privatização da terra, expulsão da população camponesa, transformação do trabalho em mercadoria, supressão de formas de produção autóctones, apropriação das riquezas naturais”, relaciona.

Fábio Iaderozza associa ainda o termo acumulação por espoliação, empregado pelo geógrafo e estudioso britânico David Harvey, autor, entre outros, de Cidades Rebeldes (Editora Martins Fontes). “O termo é empregado para designar as práticas contemporâneas de acumulação capitalista. Conforme Harvey, foram criados mecanismos inteiramente novos de acumulação por espoliação”, explica.

Entre esses mecanismos, o economista aponta o chamado Acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), um tratado internacional assinado pelo Brasil e vários países em 1994 no âmbito da Rodada Uruguai e da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). “David Harley vai dizer que a ênfase nos direitos de propriedade intelectual nas negociações do acordo TRIPS aponta para maneiras pelas quais o patenteamento e licenciamento de material genético, do plasma de sementes e de todo tipo de outros produtos podem ser usados agora contra populações inteiras cujas práticas tiveram um papel vital no desenvolvimento desses materiais.”

O estudo conduzido pelo economista da Unicamp reviu os principais pontos acerca do debate ocorrido em torno da legislação nacional sobre direitos de propriedade industrial durante a década de 1990. O pesquisador também elaborou uma revisão bibliográfica do processo histórico dos acordos internacionais de propriedade intelectual, desde1883, quando foi assinado a Convenção da União de Paris (CUP).

“A partir de meados da década de 1980 ocorreu a Rodada Uruguai, fórum que incluiu a revisão do GATT [Tratado Geral Sobre Tarifas e Comércio] e o TRIPS. Ali começou a ser desenvolvida uma discussão sobre propriedade intelectual muito aos interesses das grandes empresas do centro do capitalismo, como Estados Unidos, Japão e países da Europa. O TRIPS harmonizou todos os sistemas de patentes no mundo. Portanto, os países que participaram dessa Rodada Uruguai, incluindo o Brasil, tiveram que seguir aquele indicativo de legislação para propriedade intelectual”, contextualiza.

Ele informa que a lei brasileira de 1996 é, portanto, muita próxima do que foi acordado no âmbito da Rodada Uruguai. “Abriu-se a possibilidade de patentear recursos genéticos, algo que não existia até então. Importante lembrar que um pouco antes de 1994, quando se discutiu uma lei de propriedade industrial que pudesse ser usada por todos os países, aconteceu no Rio de Janeiro a Eco 92. E lá se estabeleceu a Convenção sobre a Diversidade Biológica, um tratado que dava aos países signatários certa autonomia e proteção sobre os seus recursos naturais. Mas os Estados Unidos não assinaram”, lamenta.

Apesar de reconhecer a dificuldade em uma reversão da lei de patentes brasileira, Fábio Iaderozza lembra que em 2010 aconteceu em Nagoya, no Japão, uma nova discussão, que poderia culminar com uma segunda convenção da diversidade biológica. “Mas até agora o protocolo de Nagoya conta com a participação do Brasil. É muito difícil reverter, embora exista uma discussão sobre a importância do direito brasileiro em reconhecer um regime jurídico sui generis de proteção ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade. Esse regime não trataria de direitos de propriedade intelectual, mas em direitos intelectuais coletivos”, sugere.

Publicação

Tese: “Neoliberalismo, sistema de patentes e a liberalização do biomercado emergente no Brasil na década de 1990: a privatização do conhecimento tradicional e da biodiversidade nacional”

Autor: Fábio Eduardo Iaderozza

Orientadora: Arlete Moysés Rodrigues

Unidade: Instituto de Geociências (IG)

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