quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Sob as bênçãos do xamã

Baixar versão em PDF Campinas, 19 de outubro de 2015 a 25 de outubro de 2015 – ANO 2015 – Nº 641

Dissertação detalha ações de resistência de indígenas de Roraima

Fotos: Cintia dos Santos Perreira da Silva/Divulgação
Edição de Imagens: Fábio Reis
Relações de poder ainda permeiam a vida das populações indígenas no Brasil. Uma das bandeiras, a luta pela terra e pela garantia da manutenção de seu modo de vida, parece estar longe de ter um fim. Um estudo de mestrado do Instituto de Geociências (IG) mostrou que a intrusão da Rodovia Perimetral BR-210 no Estado de Roraima, na década de 1970, trouxe para os indígenas Yawaripë (subgrupo Yanomami) epidemias, doenças e desestruturação socioespacial. 

Apesar da desestruturação ainda ser intensa nessas aldeias, têm havido ações dos próprios Yanomami para recuperação da sua cultura como forma de resistência e resgate das características culturais que foram, aos poucos, desaparecendo com a intrusão da rodovia e de não indígenas em seu território, dentre eles garimpeiros, mineradores, madeireiros, produtores agrícolas modernizados, assentados rurais de projetos do Incra. 

A intrusão da rodovia modificou as relações sociais e a autonomia sobre os deslocamentos migratórios do grupo pelo território. Impedidos de exercerem seus costumes, pelo contato massivo com trabalhadores da construtora da rodovia e outros agentes, os Yawaripë tiveram alterações na base técnica da sua vida coletiva, o que exigiu transformações no comportamento e na forma de uso do território. 

O que está em jogo é o regime de propriedade da terra e as relações de poder sobre o uso do território. Essa é a constatação da antropóloga Cíntia dos Santos Pereira da Silva em estudo orientado pelo docente do Instituto de Geociências (IG) Vicente Eudes Lemos Alves.

Cíntia começou a pesquisar os Yawaripë em 2013 e fez trabalho de campo em Roraima em 2014. Os Yawaripë habitam as comunidades de Serrinha e Cachoeirinha, distantes uma da outra cerca de 1 km, com uma população em torno de 145 habitantes (segundo dados DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena, de 2014).

Nessa imersão, buscou analisar o fio condutor do processo de desestruturação social gerado pela intrusão da rodovia, além de revelar, através de análise das práticas socioespaciais, como esse grupo resiste à desestruturação total do seu modo de vida. 

A antropóloga permaneceu 15 dias em trabalho de campo, visitou a terra indígena e fez pesquisas na capital, em órgãos públicos e na Hutukara Associação Yanomami (HAY). Durante a visita, foi acompanhada por funcionários do Instituto Socioambiental e da HAY. 

Como ela não é falante da língua Yanomami (conjunto linguístico: Yanomam, Yanomami, Ninam ou Yanam e Sanima), precisou de ajuda na tradução dos diálogos. Os funcionários do Instituto Socioambiental e alguns Yanomami que trabalham na HAY fizeram essa ponte. 

Mesmo com o processo de desestruturação socioespacial, averiguou a especialista, eles ainda mantêm algumas tradições. “Esse processo, imposto pela intrusão da rodovia e pelo contato com não indígenas, culminou no enfraquecimento das tradições e práticas Yanomami, convergindo para degradação socioespacial, mortes e epidemias”, lamenta. 

INTRUSÃO

As interferências na aldeia aconteceram mais a partir da década de 1970, quando iniciou a construção da rodovia BR-210 no território Yanomami. O traçado da rodovia cortou o território onde habitam os Yawaripë, além de outros subgrupos Yanomami. Os Yawaripë foram os mais atingidos. Eles estavam mais próximos do limite leste da terra indígena (limite com municípios como Caracaraí e Mucajaí). Com isso, a intrusão impôs vários deslocamentos involuntários que concorreram para um papel desestruturante da vida socioespacial desse grupo.

Hoje, é muito difícil fazer um censo nas aldeias, em especial pelas características socioterritoriais desses grupos, que são marcadas por mudanças permanentes de suas habitações, e pelo relativo isolamento dessas populações. 

Não obstante, desde 1973 verifica-se uma dramática redução no contingente da população indígena, em virtude de mortes por conflitos com não indígenas, sobretudo por epidemias resultantes do contato não indígena. Só em 1990, esse grupo iniciou uma recuperação demográfica lenta e gradual. 

Os Yawaripë ficam mais isolados dos outros Yanomami e, em alguns momentos, têm um maior contato com os não indígenas do que com os próprios Yanomami. 

Um dos objetivos da pesquisa foi observar, a partir do método comparativo-dialético e da análise da teoria da Morfologia Social, de Émile Durkeim e Marcel Mauss, como houve a desestruturação social desse grupo através da investigação da sua vida social, suas técnicas e seus processos de resistência à intrusão dos objetos técnicos no território Yanomami. A pesquisadora comparou a morfologia social das aldeias Yanomami com a morfologia social das aldeias Yawaripë. 

CHABUNO 

Cíntia ressalta que grande parte das aldeias Yanomami são compostas de casas coletivas de círculos concêntricos, que são ressonâncias do uso do território onde o centro é o lugar do coletivo. 

No círculo central, fica a casa coletiva – o Chabuno. No espaço interaldeão, os círculos são divididos conforme as atividades nos microespaços do cotidiano. 

O círculo que se distancia 5 km da casa coletiva é a área de uso imediato. À 10 km de distância, em outro círculo, têm as atividades individuais (caça, pesca, roça, coleta familiar diária). Num raio de 10 a 20 km, ocorrem as expedições de caça e coleta plurifamiliar. “Esses círculos fazem parte da conformação socioespacial dos Yanomami e da manutenção do seu modo de vida”, conta Cíntia. 

Os Yanomami são organizados e vivem dentro dos círculos internos. Há uma lógica espacial de distribuição das atividades cotidianas, sendo que as famílias da aldeia vivem todas no Chabuno (círculo maior), e cada família possui um espaço determinado. 

A área central, chamada Yano a miamo (praça central), é o espaço multifuncional dos rituais fúnebres, de pajelança e xamânicos, além de ser o lugar de celebração das alianças com outras aldeias Yanomami. 

Eles vivem no Chabuno de dois a três anos. Nesse período, a colheita e a caça diminuem. Então percebem que está na hora de montar outro Chabuno em outro lugar. A distância que eles estipulam para o próximo domicílio é a distância suficiente para que o novo Chabuno tenha alimentos, o que não exclui a possibilidade de um retorno ao sítio antigo para colhê-los. 

Pode ser que, dali a 20-30 anos, eles voltem e tenham que reconstruir outra moradia no lugar do sítio antigo. Por isso, a necessidade de se manter a eficiência da utilização do espaço e da lógica de sua ocupação. 

É curioso que, enquanto o Chabuno vai sendo reconstruído, eles montam abrigos temporários próximos à nova construção, até que ela fique pronta. “Ficou claro que eles migram em seu território para não fazer uso extremo dos recursos naturais. Os Yanomami acreditam que, para a sobrevivência do ciclo da caça e da agricultura, é necessário um período de recuperação”, contextualiza a mestranda. 

XAMÃ

Nos processos de resistência dos Yawaripë contra essa ‘guerra genocida’, tem a figura do xamã. A técnica é a mediação do homem e da natureza. Ele é o único capaz de se conectar e traduzir os ensinamentos dos espíritos Xapiripë na proteção da aldeia. 

O xamã é aquele que detém o conhecimento do mundo terreno e é o único que pode manter os membros da aldeia em segurança contra investidas cosmológicas, bruxaria e ataques de guerreiros. 

Dessa forma, os fenômenos da natureza, a oferta de caça, pesca, plantação, fertilidade dos solos, todos esses elementos estão interligados e são controlados pela interferência dos xamãs. “Devido ao contato com o não indígena, também houve degradação ecológica, recrudescimento demográfico, desnutrição e mortes. Por isso o valor de se resgatar o papel do xamã nas aldeias Yawaripë”, defende.
LATIFÚNDIOS

A terra dos Yanomami é a única demarcada de modo contínuo em maior extensão para uma etnia no país, estando situada tanto no Brasil quanto na Venezuela. Além dos 19.338 Yanomami que habitam a terra indígena, há também cerca de 471 Yekuana (falantes da língua Karib), de acordo com o DSEI (2011). 

Cíntia avaliou os Yawaripë para entender o processo de desestruturação social e pela necessidade de discutir agora a intrusão de técnicas e materialidades no seu território. Também pelo fato de ser o grupo que mais sofreu com a intrusão da BR-210, como é possível observar (além de outros elementos) no tipo de construção das casas (modelo regional) com telhado, porta e janelas. 

Esse episódio trouxe todo tipo de contato, a priori com empregados da construtora da rodovia e com fazendeiros que arrendaram pequenas propriedades nos arredores da terra indígena. Posteriormente, adentraram o território Yanomami próximo às habitações Yawaripë. 

A região recebeu loteamentos de terra (por assentamento) e latifundiários. O que ocorria no entorno, entrou na terra. “Quando se está no limite, é difícil respeitá-lo sem uma política de proteção efetiva do Estado e dos órgãos de proteção dos indígenas”, salienta. “Os fazendeiros devastam a terra para plantar com vistas ao agronegócio. Isso tem graves implicações na fauna e na flora, culminando em degradação ambiental.” 

Por conta disso, os Yawaripë começaram a não ter mais alimento porque a caça fugiu e porque não conseguiam mais plantar. Não dava mais para pescar, pois o rio foi poluído e, assim, não tinham como sobreviver. Passaram a precisar de assistência e, em alguns casos, a mendigar para sobreviver. 

Após um longo processo de luta, o grupo tem conseguido retirar fazendeiros de suas terras. Contudo, há necessidade de políticas eficazes dos órgãos para que isso não volte a ocorrer. 

O apoio da Hutukara está trazendo para as duas comunidades Yawaripë a chance de recuperar as suas atividades cotidianas e socioespaciais. A associação fez, em 2013, o encontro de xamãs na aldeia Yawaripë. Esse encontro, além de outras atividades da HAY, tem como objetivo trazer para essas comunidades a possibilidade de recuperar suas atividades sociocosmológicas. 

O processo de desestruturação foi muito grave, mas, para a recuperação das características socioespaciais, o xamã tem um papel fundamental, por trazer para a aldeia o resgate das características socioculturais dos Yanomami, comenta Cíntia. 

Os Yanomami devem buscar aproximação e, a partir daí, recuperar uma parte da cultura que se perdeu com o contato com o não indígena. São 45 anos desse contato. “As políticas de distintos governos não são em prol dos indígenas e sim dos grandes produtores agrícolas. Estes são problemas de ontem e de hoje. Então a luta continua.”

Publicação

Dissertação: “Os Yawaripë Yanomami: da intrusão da rodovia perimetral norte aos processos de resistência dos povos da floresta”

Autora: Cíntia dos Santos Pereira da Silva

Orientador: Vicente Eudes Lemos Alves

Unidade: Instituto de Geociências (IG)

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