quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Biopirataria e os povos indígenas (pre.univesp.br)

Somente regulamentação específica pode proteger conhecimentos tradicionais 

Matheus Vigliar

Samia Roges Jordy Barbieri 

24/9/14 

O termo biopirataria refere-se à apropriação de recursos genéticos ou de conhecimentos tradicionais de comunidades que vivem em regiões ricas em biodiversidade, como por exemplo povos indígenas, por indivíduos ou por instituições que, posteriormente, para fins comerciais. Foi a partir da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Rio+20, que a apropriação dos conhecimentos tradicionais começou a ser discutida, culminando com a busca da tutela jurídica e de uma legislação aplicável à biodiversidade, aos conhecimentos tradicionais e associados como um modo de combater a biopirataria. 

De acordo com o Instituto Brasileiro de Direito do Comércio Internacional, Tecnologia da Informação e Desenvolvimento (CIITED), a biopirataria consiste no ato de transferir recurso genético (animal ou vegetal) e/ou conhecimento tradicional associado à biodiversidade, sem a expressa autorização do Estado de onde fora extraído o recurso ou da comunidade tradicional que desenvolveu e manteve determinado conhecimento ao longo dos tempos. Esta prática infringe as disposições da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), que está estruturada sobre três bases principais – a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável da biodiversidade e a repartição justa e equitativa dos benefícios provenientes da utilização dos recursos genéticos – e se refere à biodiversidade em três níveis: ecossistemas, espécies e recursos genéticos. 

Conhecimento milenar, lucro imediato 

As comunidades indígenas acumulam conhecimento milenar sobre os recursos naturais, fruto de observação da natureza. Esses saberes foram transmitidos de geração em geração, de forma ágrafa e oral. Uma das formas em que se expressa esse conhecimento, por exemplo, é a medicina tradicional indígena. Hoje, no entanto, esses povos têm sido vítimas frequentes da biopirataria. Muitos medicamentos e cosméticos que usamos hoje foram baseados na sabedoria dos povos indígenas sem que houvesse qualquer tipo de contrapartida. Há vários exemplos de conhecimentos que foram apropriados por empresas e que foram patenteados em outros países: cupuaçu, açaí, andiroba, copaíba, cipó da alma, vacina do sapo, espinheira santa, jaborandi, jambu, veneno da jararaca, pau-rosa. 

O famoso perfume francês Chanel nº 5 utiliza o pau-rosa em sua composição. O medicamento captopril, fabricado pelo Laboratório SEM e indicado para o tratamento da hipertensão arterial, é produzido a partir do veneno da jararaca. As empresas que fabricam esses produtos recebem royalties por sua comercialização, mas não oferecem nenhuma contrapartida financeira para as comunidades ou onde obtiveram esse conhecimento. 

Novas leis para um problema novo 

A biopirataria ainda é um tema novo, ainda sem uma regulamentação rigorosa e efetiva para coibir a fabricação de produtos sem o pagamento de royalties pela utilização de conhecimento tradicional associado à biodiversidade. A Convenção sobre a Diversidade Biológica afirma a soberania dos Estados sobre os recursos genéticos. Entretanto, não regula os direitos das comunidades indígenas que vivem em áreas ricas em biodiversidade. Nesse sentido, o termo “repartição equitativa” merece uma regulamentação mais precisa. Portanto, cabe ao Estado brasileiro a regulamentação do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais, de modo a proteger esse conhecimento de interesses puramente comerciais. 

No Brasil, algumas leis esparsas foram feitas, mas não atuam diretamente contra a biopirataria. Uma delas é a Lei n° 9605/98, que dispõe sobre crimes contra o meio ambiente, especificamente contra a fauna e flora, e a Medida Provisória nº 2186-16/2001, que regula o acesso ao patrimônio genético, ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia. Atualmente, tramita um projeto de lei que trata do acesso a recursos naturais e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. O assunto é urgente e precisa entrar no ordenamento jurídico para coibir a biopirataria. 

Precisamos lutar para que as populações culturalmente diferenciadas, como são os povos indígenas, possam participar do desenvolvimento da sociedade, mantendo sua identidade, buscando novos mercados consumidores para a venda de seu artesanato e produtos que sejam desenvolvidos a partir do conhecimento indígena. Estas ações devem ser baseadas no etnodesenvolvimento, cujo princípio estabelece a autonomia e autodeterminação dos povos indígenas. Com isso, essas comunidades podem deixar de ser minorias excluídas, passando a sujeitos de direito e protagonistas da sua própria história. 

sobre o autor 
Samia Roges Jordy Barbieri

Presidente de Comissão Permanente de Assuntos Indigenas da OAB/MS, Conselheira Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e Procuradora Municipal. Autora das obras: Os direitos constitucionais dos índios e o direito à dferença, face ao princípio da dignidade da pessoa humana(Almedina, 2009) e Biopirataraia e Povos Indígenas (Almedina, 2014).

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