quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Pesquisa busca alternativa contra a leucemia

A enzima asparaginase recombinante de leveduras teve bons resultados contra células do câncer durante testes in vitro e pode ser opção com menos efeitos colaterais

Duas leveduras – incluindo a espécie Saccharomyces cerevisiae, presente nos fermentos biológicos usados na culinária – estão no foco de uma pesquisa que busca uma terapia alternativa para o tratamento das leucemias, formas de câncer que afetam algumas das células do sangue. Em laboratório, os pesquisadores recorreram a técnicas de clonagem e biologia molecular para produzir a enzima asparaginase encontrada nas leveduras S. cerevisia e em outro tipo de levedura, chamado de Picchia pastoris. Os testes in vitro mostraram que a molécula atua contra as células cancerígenas e apresenta características desejáveis para o desenvolvimento de um potencial novo medicamento. Liderado por pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o trabalho tem colaboração de cientistas do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos) e do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz). Resultados do estudo foram publicados recentemente na revista científica ‘Protein Expression and Purification’.

Foto: Gutemberg Brito
Entre outros fatores, a análise das características físico-químicas da enzima apontou atividade nas condições do sangue

Há mais de 30 anos, a enzima asparaginase, extraída de bactérias, é utilizada no combate ao câncer, principalmente nos casos de leucemias e linfomas. Por exemplo, para os pacientes com leucemia linfocítica aguda (LLA), mais frequente nas crianças, a molécula faz parte da primeira opção de quimioterapia, aumentando significativamente a chance de cura. “O tratamento com asparaginase é muito eficaz para o controle da doença. Porém, a enzima obtida a partir de bactérias provoca uma reação forte do sistema imunológico. Alguns pacientes apresentam reações adversas graves, como hemorragia e choque anafilático, que obrigam a interrupção dessa terapia”, diz o pesquisador Jonas Perales, chefe do Laboratório de Toxinologia do IOC e um dos coordenadores do estudo.

Reduzir a dependência das importações do produto e o custo do tratamento também são objetivos do projeto. Em 2013, o laboratório norte-americano do qual o Brasil importava o medicamento a base de asparaginase parou de produzi-lo e houve desabastecimento no país. Desde então, o Ministério da Saúde assumiu a compra diretamente de outro fabricante internacional. Só no ano passado, foram gastos R$ 2 milhões no Sistema Único de Saúde (SUS) para aquisição do remédio. “O desenvolvimento de um biofármaco nacional pode baratear a terapia e aumentar a segurança sobre o abastecimento do mercado brasileiro”, ressalta a primeira autora do artigo, Luciana Girão, estudante de doutorado no Instituto de Química da UFRJ, com orientação do pesquisador do IOC Jonas Perales e da professora da UFRJ Elba Bon, além de co-orientação da pesquisadora de Farmanguinhos Maria Antonieta Ferrara, todos coautores da publicação.

Busca pela similaridade
O sucesso da asparaginase é baseado na sua capacidade de degradar o aminoácido asparagina, que integra proteínas essenciais para a sobrevivência das células. “Diferentemente das células saudáveis, que podem produzir asparagina internamente, as células leucêmicas não conseguem sintetizar esse aminoácido, dependendo da captação das moléculas que circulam na corrente sanguínea. Quando a enzima degrada a asparagina no sangue, as células cancerígenas não podem produzir uma série de proteínas e morrem”, explica Perales.






Foto: Gutemberg Brito



De acordo com Perales, a asparaginase recombinante de leveduras apresenta aspectos semelhantes à enzima humana

Produzida em pequena quantidade no corpo humano, a asparaginase pode ser encontrada em diversos micro-organismos, como bactérias e fungos, assim como em plantas e animais. Segundo os pesquisadores, embora tenham estrutura básica parecida, as enzimas sintetizadas pelas diferentes espécies apresentam particularidades, que podem influenciar no seu desempenho como medicamento. Dessa forma, na comparação com a molécula extraída de bactérias, a asparaginase obtida a partir da levedura S. cerevisiae é mais similar à asparaginase humana, o que pode facilitar a sua aceitação pelo organismo. “Acreditamos que essa enzima deve estimular menos o sistema imune dos pacientes, reduzindo os efeitos colaterais. Ela poderia ser uma segunda opção para os indivíduos que desenvolvem hipersensibilidade à asparaginase de bactérias ou, até mesmo, uma primeira opção, caso os resultados ao longo da pesquisa mostrem um desempenho superior”, pondera Luciana.

Análise da molécula

Uma vez que a levedura S. cerevisiae sintetiza pouca asparaginase, a primeira fase do trabalho envolveu técnicas de engenharia genética para produção da enzima em maior quantidade. O gene que orienta a produção da asparaginase na S. cerevisiae foi clonado e inserido em leveduras da espécie P. pastoris, que podem ser induzidas a produzir grande quantidade de proteínas. Reconhecidamente seguras, essas leveduras já são empregadas na fabricação de outros medicamentos, o que facilita a sua utilização e a aprovação dos produtos pelos órgãos reguladores. No caso da asparaginase, os cientistas conseguiram obter sete vezes mais enzima utilizando essa técnica em comparação com a produção em S. cerevisiae diretamente. 

A partir dessa metodologia, os pesquisadores avançaram para a etapa seguinte: avaliar as características da asparaginase recombinante de leveduras e sua ação contra células de leucemia. Conforme esperado, foi identificado que a enzima produzida pelas leveduras apresenta carboidratos na sua composição, ao contrário do que ocorre nas asparaginases extraídas de bactérias. Essa característica é um dos pontos a favor da nova molécula, na medida em que a torna mais parecida com as enzimas humanas. “A glicosilação [adição de carboidratos às proteínas] não acontece em bactérias, mas é uma característica no processo de produção de enzimas tanto em leveduras, como em seres humanos. Essa é uma grande vantagem”, diz Perales.

Foto: Arquivo pessoal
Envolvida no projeto desde o mestrado, Luciana agora pesquisa formas de aprimorar o desempenho da enzima durante doutorado sanduíche na Universidade de Lisboa

Atividade ótima

Considerando que o pH e a temperatura podem alterar a forma tridimensional da enzima, modificando seu desempenho, os pesquisadores investigaram a estabilidade da molécula nas condições do sangue. As análises apontaram atividade ótima em pH 7,2, valor próximo ao pH sanguíneo, que fica em torno de 7,4. A atividade máxima da asparaginase de levedura foi identificada em 46ºC, e na temperatura de 37ºC, encontrada no sangue, ela manteve 92% do seu desempenho. “Esses valores são bastante positivos. Além de apresentar atuação nas condições fisiológicas, a enzima se mantém estável na faixa de pH de 6 a 10 e em temperaturas até 45ºC. Isso facilita a manipulação e o armazenamento da molécula, que não precisa, por exemplo, ser mantida na geladeira durante os processos de purificação”, comenta Perales. 

Os testes para avaliar o efeito da molécula contra as células cancerígenas foram feitos com culturas de células de leucemia mielóide aguda. Os experimentos mostraram que a asparaginase de levedura inibe a proliferação dessas células, sendo que quanto maior a dose da enzima, maior a inibição. “Esse resultado é fundamental para a continuidade da pesquisa”, declara Luciana, que nesse momento investiga formulações para melhorar o desempenho da enzima durante o doutorado sanduíche na Universidade de Lisboa, em Portugal. “Queremos reduzir ainda mais a imunogenicidade e ampliar o tempo de circulação da asparaginase no organismo, o que permitiria o uso de doses menores”, conta ela. As próximas etapas da pesquisa pretendem envolver novos testes em culturas de células e em modelos animais para avaliar a eficácia e a segurança do biofármaco. “Esse é um projeto de longo prazo, que não seria possível sem a colaboração científica. As competências complementares dos grupos da UFRJ, IOC, Farmanguinhos, Bio-Manguinhos e Universidade de Lisboa são fundamentais para avançarmos no desenvolvimento desse novo medicamento”, destaca Perales.

Reportagem: Maíra Menezes
11/08/2016

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